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06/11/2016

Escavação arqueológica na cozinha sulamericana


Uma coisa muito difícil é encontrar literatura que efetivamente ilumine o território culinário. Por isso mesmo, autores como Elisabeth David são tão incensados, convertidos em clássicos. Fornecem uma perspectiva cultural de análise culinária que vai muito além desse v/cio de se colecionar receitas como se, assim, estivéssemos nos apropriando da culinária dos povos.

 E quando se sai da culinária européia e dos países desenvolvidos, mais difícil ainda. Dai o prazer da descoberta, quando se lê um livro como Karu Reko - antropologia culinária paraguaya, de Margarida Miró Ibars. Trata-se de um livro que tem mais de 10 anos, mas só agora pude me demorar na sua leitura.

É uma compilação de 252 receitas paraguaias, quase todas reunidas em classes de preparação devidamente contextualizadas, oferencendo, ainda, variantes que vão das formas tradicionais àquelas contemporâneas. Assim, embora não se trate de uma grande obra de antropologia, é um excelente exemplo de como se deve fazer a etnografia culinária. 

O Paraguai é um país de história muito particular - desde as missões jesuíticas até seu pobre destino atual - na qual os brasileiros tiveram uma participação que deveria nos encher de vergonha indelével, joguete que fomos da diplomacia imperialista do século XIX. Ainda assim, sobreviveu uma população que não deixou de ser indígena em grande maioria - guarani especificamente - e plasmou um dos poucos países bilingues, coisa que não conseguimos preservar, graças à proibição do Marques de Pombal de ensino do nhengatu, língua de inspiração tupi que se falava amplamente na Amazônia e em São Paulo. 


A culinária paraguaia é a culinária rica e variada dos povos guaranis que, como se vê nesse livro, serve como a ponta do iceberg para se contemplar o modo popular de comer em toda a vasta área onde os guaranis estiveram presentes - parte da Bolívia, Argentina, Uruguai e vasto território brasileiro, que une São Paulo aos países vizinhos citados. Nesse sentido, rivaliza também com as grandes tradições mais incensadas, como maias e astecas.

A coleção de ingredientes é impressionante. Desde os milhos, abóboras, feijões, carne seca ao sol sem sal (chamada cecina, equivalente ao charqui pré-colombiano), tudo capaz de iluminar uma unidade de culinárias latino-americanas sem igual -  até coisas muito singulares, como o aproveitamento do guaimbe (folha e frutos). Sempre convivi com essa planta e muitas vezes me perguntei se seria comestível, ouvindo que era venenosa; agora sei que as modernas PANCs se constroem assim: em cima da ignorância cultivada por nossos modos de vida urbano-industrial.

Locro, jopara, puchero, chipas, aloja (bebidas de frutas, adoçadas com mel, talvez a mesma coisa que nosso aluá) são, no livro, apresentadas em inúmeras versões datadas pela história, mostrando a substituição de ingredientes ao longo do tempo - como a gordura de vaca pela manteiga, óleo ou margarina - além de se “matar a charada” da sopa paraguaia, que não é uma sopa mas é curiosidade de todo mundo.

A culinária paraguaia nunca será a “bola da vez”, no sentido em que a peruana se converteu. Mas, pelo que conservou da culinária indígena,mantendo "sob controle" a culinária do colonizador, ilumina a história de boa parte do continente sul americano e, nesse sentido, permite a pesquisa e a experimentação mais racional a partir de um “substrato guarani” que teimamos em não reconhecer (inclusive na medida em que precisamos ir à Amazônia à busca de uma indianidade que nos faz falta para alimentar o mito das três raças).


Como diz Eduardo Viveiros de Castro, nossa história transformou o índio no pobre. O massacre da cultura culinária fez parte desse processo. No entanto, para quem sabe ver, ela está ai, pulsante, à espera de quem entenda que a diversidade da obra humana é de valor inestimável na construção de um futuro de diversidade e riqueza que a história do colonialismo silenciou. Dessa perspectiva, a leitura de Karu Reko é fundamental.


21/10/2015

A ciência por trás do caldo de carne


  Razões para ler o novo livro de Cristiana Couto

O livro que Cristiana Couto acaba de publicar - Alimentação no Brasil Imperial (São Paulo, Educ, 2015, 239 páginas) não é para qualquer um. Como ela mesmo adverte, “onde alguns enxergam simples obras culinárias, existem incontáveis fios históricos, culturais e, em especial, científicos, que formam um novelo delicioso, porém trabalhoso de desembaraçar”.

O que está em foco são os estudos sobre alimentação e suas abordagens; as ideias afetas à nutrição, contidas nas teses médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; a química e a fisiologia dos alimentos segundo o pensamento do século XIX; as relações do gosto e da gastronomia com a ciência; as heranças científicas e culinárias europeias nos receituários colhidos no Brasil. Mais que erudição, é preciso espírito científico para se interessar por esses aspectos que a as obras culinárias registram de maneira nada óbvia.

Achamos bacaninhas palavras como “natural”, “saudável”, etc, mas não somos muito capazes de relacionar essas demandas alimentares com o conhecimento científico que deveria sustenta-las. Contudo, as escolhas alimentares de cunho “saudável” se fazem de acordo com certa medicina da época, que por sua ver corporifica conhecimentos transitórios sobre química, física, fisiologia humana, etc. Assim, não é exato dizer que “você é o que você come”. O correto seria: você pensa que é o que você pensa que come.

Comemos ideias sobre saúde, evitamos riscos que pensamos que existem (você já ouviu falar em “miasma”?) e assim por diante.O beef tea, por exemplo, indicado para doentes e trabalhadores manuais, surge por volta de 1840 da crença de que os nutrientes mais importantes estavam nos líquidos da carne, perdidos no cozimento. Ao serem concentrados, podiam ser restaurados numa sopa. Em 1865 surge o beef tea como produto comercial.

Com base nesse tipo de percepção, Cristiana Couto faz uma nova leitura de Brillat-Savarin, que seria muito útil que os seus encomiásticos de hoje lessem, pois se dariam conta de que o espírito “gourmand” não era algo meramente hedonista, como se pretende vulgarmente. Do mesmo modo, o nosso Cozinheiro Imperial (1839) buscou ser um manual da “ciência culinária” que nos equiparasse às nações desenvolvidas da Europa. A partir desse livro, a “química dos alimentos” entra na ordem do dia do lado de cá do Atlântico.

Na medida em que a ciência, a medicina, vão ingressando no território do receituário, orientando-o em boa medida, percebemos que os cientistas pensam a ciência, ao passo que nós, comuns dos mortais, comedores ingênuos, somos pensados pela ciência que se vulgariza. Essa é uma boa razão para ler esse livro, pois a ingenuidade sobre o passado e sobre o presente não serve à inteligência. Em síntese: quando você encher a boca para falar “natural” ou “saudável” é bom que saiba o que está dizendo.

16/10/2015

Ah, sim! Come-se também. (Nina Horta II)


:me explico. Não é que Nina Horta não escreva “livro de comida” como afirmei; mas que a comida para ela não é o mastigável na sua crueza. Não é uma literatura foodie. É o percurso da comida, as conversas que a comida provoca, e memória do comido. Montalbán, meu guru no assunto, dizia que quem come, come duas vezes; numa delas mastiga a rememoração do que foi comido antes. Nina é essa segunda deglutição. Um Brasil que comeu e, agora, é comido como rememoração.

E ela estica isso ao limite, como na crônica “balas”, quando você se dá conta de que é possível fazer uma história da infância no Brasil através das balas. E pouca gente sabe o sabor da bala Chita, assistindo o seriado do Zorro na matinê. Lembro de que quando chegava o caminhão da Confiança na cidadezinha do interior era uma visita mais importante do que a do bispo, que parecia vir na poeira salvar nossas almas do pecado da gula já cometido com folgança.

O casamento também não escapa à rememoração deglutidora de Nina Horta. As mães davam para as noras seus “cadernos de receita” que, na prática, não funcionam (como nenhuma receita funciona). Dai as noras vão crescendo no cozinhar, abandonam os cadernos falaciosos e deixam de competir com as sogras. Ganham os filhos mimados a garfo e faca. O malfeito baseado nos cadernos é emancipador. Mas tem muito antropólogo que coleciona cadernos de receita, escreve teses enormes sobre doçaria, achando que, assim, vai penetrar no coração da tradição. Balela.

A comida tece geografias. “Belo Horizonte era para mim uma terra triste, de mulheres desesperadas e mudas enterradas no tempo, chocolates sedutores proibidos, balas boas, mas duras com pedra”. Então, se não em Minas, onde a boa comida de verdade? “No Vale do Paraíba (está) o que deveria ser a verdadeira cozinha paulista”: patos macios, lambaris, frutas no pé, chuvas de içá após as trovoadas. “Qual a explicação do amor pelo passado?” Oras, “somos nós por dentro”!

 A cozinha de Nina é testemunha das nossas patriotadas ou traições. Leia o que escreveu sobre a descoberta pessoal da coca-cola: “a bebida vinha acompanhada da ideia de felicidade, riqueza e americanos. Numa ingratidão sem fim, traímos o guaraná e aos poucos nos viciamos totalmente, com recaídas, numa bebida que achávamos ruim”. (Suspeito que foi esse tipo de traição ao nacional que, com culpa, nos fez gostar do cinema novo e seu som direto inaudível. Coca-cola e cinema, ai está um tema e tanto para estudos acadêmicos). Mas o velho hábito perdura até hoje, porque quando Nina sai a jantar com amigos pede uma “coca geladíssima, enquanto bebericam um vinho mais adequado ao que comemos” e fazem cara de verguenza ajena.

Uma das melhores crônicas do livro chama-se “restaurante”. É uma narrativa sem a descrição de uma única garfada. Nela o leitor percebe que a comida é apenas um pré-texto da escrita de Nina Horta: vasculha com o olhar os habitantes de um restaurante, dissecando suas almas que já estavam dissecadas na sua imaginação. Os clientes reais, que conversam e comem, servem para precipitar pensamentos.

Há também o presente culinário da autora e não só aquele mundo de andanças povoadas por galinheiros. Nina propõe que um dia se escreva a história dos bufês de São Paulo, da qual foi protagonista. Conta o surgimento do Ginger, vocacionado para a classe média alta (seja lá o que isso significa). Regou de canapés todas as inaugurações importantes da cidade: lojas, shoppings, todas as lojas da Oscar Freire; comemorou coleções da Huis Clos, da Maria Bonita; surfou nas indicações de Sig Bergamin para os clientes. Era o progresso suntuoso. Ginger tinha fama de criativo e “inventamos um bocado nessa época”. Velas de marzipan, convite impresso em hóstia comestível; Nova York não tinha mais o que inventar e isso se refletia nos pratos servidos pelo bufê na medida em que era demandado pelos clientes embasbacados pelo modo de comer na metrópole.

O mercado foi crescendo “e foi ficando difícil capitanear e inventar novidades para todas elas. Tivemos sempre dificuldade para conseguir auxiliares que tivessem nosso olhar, criativo mas muito despojado, enfim, que enxergasse como nós enxergávamos”. A prosa do capitalismo também desafinava, gaguejava. Mas Ginger ia mais ou menos na onda dos outros restaurantes e casas noturnas ligados à família: o América, o Radar Tantan (muito antes desse Major Facundo da noite paulistana surgir...), o Ritz, o Spot. Enfim, Nina respirou comida de verdade (ou de fantasia), além de escrever. E talvez por isso mesmo tenham mobilizado sua imaginação para a escrita, num jornal que, hoje, acha virtuoso desmaterializar a sua prosa.

Ela diz que “para sermos bons cozinheiros precisamos ler não só livros de comida, mas romances, principalmente”. E eu acrescentaria: as suas crônicas. Numa época em que a comida é pensada como nutrição ou estética evanescente e palatável - da mão para a boca e desta para o sangue, sem passar pela alma, o novo livro de Nina Horta é uma tábua de salvação. Mas os cozinheiros são gente prática, que tem aversão à leitura, como dizia Santi Santamaria. Azar o deles. Que se percam ao som do lamento de uma panela de pressão.

15/10/2015

Nina Horta e o fim dos galinheiros


Uma coisa é certa: frango ensopado não é sopa. Esse o único vinculo entre o atual O frango ensopado da minha mãe e o Não é sopa, de 1995. É verdade que não sei muito bem distinguir uma coisa da outra, exceto pela quantidade de água. E Nina Horta não colocou mais água para fazer esse livro. É outro livro, não Não é sopa reloaded. E é o acontecimento editorial do ano para muitos de nós.

Bem, acho que é hora de dizer a verdade. Chega de enrolação: essas “crônicas de comida” que agora aparecem reunidas em livro não são, de fato, sobre comida. Mesmo no capítulo sobre receitas, a crônica de abertura é uma conversa ouvida na mesa ao lado no antigo restaurante Ca´doro, onde um americano fala sobre o fungo huitlacoche para uma garota bobinha - a primeira “cantada culinária” que Nina diz ter visto. Outra crônica é sobre a história do roux; outras sobre feijões, bacalhau, arrozes, quibe cru, foie, vísceras e miúdos, logo descambando para comidas de fazenda e o menu de Mari Hirata. Não pense o leitor, portanto, que vai aprender a cozinhar com Nina Horta. Ela não escreve para ensinar o oficio da cozinha. Vai é aprender outra coisa.



Importante na crônica é a atemporalidade. Desgrudar dos fatos que empapam, secar o excesso de água que dilui o caldo do cotidiano. Por isso sobrevivem aquelas de Machado de Assis, de Drummond. E as da Nina Horta.

Crônicas são um modo de olhar a vida que escorre entre os dedos. E a comida é um centro gravitacional da vida e por isso Nina fez dela a linha que costura o patchwork cotidiano. Em torno dela a família, o trabalho, a cidade, ganham sentido. E o sentido da culinária de Nina Horta está plantado num Brasil de meados do século passado e que não existe mais. Sua mãe, por exemplo, era o “terror dos galinheiros”. E onde estão os galinheiros hoje? Hoje, “quase tudo do Brasil nos é estranho”; vivemos como “galinha cega afogada no seu próprio escuro”.

Esse galinheiro de metáforas literárias remete a um Brasil que se prometia como um país bem melhor do que aquele que se tornou. Mas não há, em Nina, qualquer saudosismo ou anti-modernidade. Ela é apenas ante pós-moderna e por isso, com vagar, deixa escorrer no seu texto cores, sabores, falas de um tempo no qual queríamos ser melhores. Talvez por isso, constata que os leitores querem saber das coisas da roça, “parece que ninguém está mais interessado em comer, só em lembrar” e “só lembramos de verdade daquilo que miramos com atenção desatenta”.

Você, caro leitor, é capaz de imaginar sozinho o que é não ter um galinheiro no quintal? O que é essa pobreza de desejar apenas um "frango orgânico"? Pois só lendo Nina irá se dar conta do que o tempo lhe subtraiu em comida e em imaginação. Não que ela tenha vivido isso intensamente: só nas férias. O mais, em São Paulo, no horizonte da Casa Santa Luzia, da feira do bairro distinto. E lendo-a, lembro daqueles magníficos versos de Drummond, dedicados a Guimarães Rosa: “havia pastos/buritis plantados no apartamento”? No de Nina floresciam goiabeira, biribá, jacatiá, jaca, romã, banana.

Ela adora discorrer sobre dois temas: galinhas e empregadas (embora nesse livro não estejam tão presentes...). Já disse a ela que ambos fazem uma ponte invisível entre a sua literatura e a de Clarice Lispector. Ela não gosta da comparação. Paciência. Também não sou crítico literário.

Tem outra coisa: embora não seja um livro sobre culinária, ele nos ensina a compreende-la. Eu mesmo só passei a olhar a cozinha com realismo ao ler essa passagem: “é preciso estudo, experiência, memória, imaginação, abertura, prazer, ritmo, astúcia e visão da comida como uma língua a se aprender e que devemos interpretar segundo nossas possibilidades e vivências”. Na mesma linha, vale ler o texto “as palavras”, onde mostra o quanto de literário é o que comemos - banqueteamos palavras, como escreveu François Revel.

Há muito o que dizer. Acho melhor voltar a O frango ensopado da minha mãe num outro dia. Mas, desde já, registro um defeito no livro: falta um índice remissivo, mas isso é muquiranice editorial.


18/04/2015

O homem que não precisava de deus


Charles Darwin morreu há 133 anos, em 19 de abril de 1882. Ele foi o principal cientista a expor a fundamentação materialista da vida, mostrando que era possível prescindir de qualquer deus na explicação do funcionamento do mundo. Por isso é considerado o expoente da “geração do materialismo” que abarca a produção intelectual europeia entre 1870 e 1900, cujo aspecto marcante é o fato de que os intelectuais nesse período leram e tomaram em conta as descobertas de Darwin, adotando com entusiasmo uma concepção evolutiva do universo, mesmo em seus campos específicos.


Darwin mostrou que, através do mecanismo da seleção natural, a vida se desdobra, geração após geração, há milênios, deixando atrás de si o que chamamos “evolução”. Um mundo que se move sem qualquer finalidade era mesmo uma ideia revolucionária que se contrapunha àquela na qual o mundo, comparado em complexidade ao mecanismo de um relógio, supunha um "supremo relojoeiro", conforme a excelente metáfora do teólogo Willian Paley. Até hoje, na luta infinda entre ciência e fé,  busca-se aninhar deus na história e, desde Darwin, sabe-se que não cabe.




Mas Darwin não foi totalmente compreendido à sua época. Quando publicou The descent of man (1871), quase ninguém leu o livro que hoje é considerado “a segunda revolução darwiniana”,  por se supor, erradamente, que fosse fruto simplesmente da aplicação do mecanismo da seleção natural aos homens. Ledo engano! O que se tem ali é a demonstração de que o homem desenvolve-se na sua animalidade por conta da seleção natural até chegar a um ponto da evolução onde não se transforma mais para se adaptar ao ambiente; ao contrário, transforma e adapta o ambiente para seus fins. Trata-se de uma verdadeira antropologia onde o antagonismo homem-natureza resolve-se pela cultura.

Uma das formas da transformação cultural da natureza foi a domesticação de plantas e animais, aplicando a eles a seleção artificial, consciente ou inconsciente, de tal sorte que, hoje, é uma quimera falar em espécies “naturais” como vieram ao mundo, pois a quase totalidade daquelas das quais nos servimos é produto do engenho humano. Recentemente comprovou-se que muitas frutas consideradas "selvagens" resumem, nas suas formas modernas, um trabalho secular de seleção por povos ancestrais.


Variation of animals and plants under domestication (1868) é a obra de Darwin que mostra a riqueza e variedade criadas pelo homem e das quais lança mão para satisfazer as várias necessidades, incluindo as alimentares e estéticas. 


Como construimos o porco doméstico, o boi, o carneiro, as galinhas, os pombos, os cachorros; ou, ainda, a rosa, a hortência, a margarida - e tudo o mais que tem nome de flor - encontra-se no Variation. Uma leitura obrigatória para cozinheiros, pesquisadores da biodiversidade e outros interessados em compreender a relação homem-natureza para além dos clichês fáceis que expressam mais preconceitos do que conhecimentos verdadeiramente úteis.



19/08/2014

NÃO FAÇA BOBAGEM NUM IZAKAYA: INSTRUA-SE COM JO TAKAHASHI

Pronuncia-se izakayá, e não izakáya. A coisa é tão nova e incipiente no Brasil que o erro é compreensível. É um lugar basicamente para se tomar saquê, comer uns negocinhos (que podem ser muito bons!), e conversar com amigos. O mais importante é você ter amigos, lógico. Pois então cuide das suas relações pessoais antes de sair por aí, de bar em bar como numa música qualquer.

Aparentemente eles não são caros, quando você olha o cardápio de petiscos. Mas é uma ilusão. Pois se você meter o pé na jaca nos saquês de categoria premium, Ginjô ou Daiginjô, vai deixar as calças. Portanto, é melhor abandonar as alegrias e tristezas excessivas em casa quando sai para beber saquê. Nada de afogar mágoas ou fazer comemorações desmedidas. Creia, aprender novos limites é sempre uma experiência enriquecedora.

A moda está apenas chegando (os foodies já estão assanhados, basta ver no instagram...), o que permite ao leitor acompanha-la passo a passo, ficando entendido numa boa prática japonesa - especialmente se já perdeu a chance, como eu, de se tornar expert nos restaurantes de sushi e sashimi. Aliás, nos izakaya não tem disso. E é bom que saiba, para não se decepcionar. Não raro ostentam a placa: no sushi. Existem uns dez izakayas em São Paulo e, segundo Jo Takahashi,  cinco são bacanas mesmo.

 Antigamente, os saquês eram classificados em nacionais e estrangeiros. Graças aos izakaya, hoje é possível encontrar vários tipos de saquês  importados (mais de 12). Essa é, pois, a missão civilizatória desses bares.

Bem, quais são os izakayas para se frequentar e ter satisfação garantida, sem querer o seu dinheiro de volta? Não digo. Compre o livro Izakaya: por dentro dos botecos japoneses (Melhoramentos, 2014), do mestre Jo Takahashi, e veja. Mesmo porque, se você não se der ao trabalho de le-lo por completo, certamente vai fazer bobagem, enfiar o pé na jaca, como já fiz mais de uma vez. Mas sou teimoso, e agora vou me instruir, redimir. Inclusive porque o livro é escrito num estilo invejável. De quebra, mesmo que você goste é de sushis, ficará sabendo mais de saquês do que normalmente se sabe.

24/07/2014

ADEUS A ARIANO

Difícil descrever a emoção ao ler o Romance da Pedra do Reino, ainda nos tempos de faculdade, quando procurávamos fervorosamente o Brasil. E este se dispunha para nós através de uns poucos livros: Grande Sertão: veredas, Romance da Pedra do Reino, Quarup, O país dos Mourões, Cangaceiros e Fanáticos, Homens e caranguejos - para citar os principais. E todos tinham algo de épico a nos contar; tinham o dom de roubar o sono, a paz.

Eram livros clássicos que hoje já não são mais. Resvalaram para aquela categoria de coisas citadas no vestibular mas que não conseguem habitar a imaginação das novas gerações. Aquele Brasil foi simplesmente abolido. Abolido da imaginação em favor de um Brasil real, que é um terreno onde se digladiam miséria e estatísticas de investimentos sociais, bolsa família, etc.

Ariano Suassuna remetia a um Brasil que era necessário trazer para perto, para a celebração cultural como antídoto a uma americanização galopante dos hábitos cotidianos. Ali nos anos 1970, quando o romance apareceu, vivia-se uma verdadeira inflexão. Surgia a idéia de um “Brasil grande”, corrompendo as convicções mais profundas sobre a singularidade de uma história dramática, é verdade, e inteiramente nossa. Mas se tratava de um Brasil, sabemos, que perdeu a parada.

Todos conhecemos o orgulho com que os espanhóis lidam a vida toda com Don Quixote - o seu “grande sertão: veredas” ou o seu “romance da pedra do reino”. Eles não existiriam no longo tempo sem o Quixote. E o que nos autoriza a crer que possamos existir sem os nossos Romance da Pedra do Reino ou Grande Sertão: veredas?

Um “clássico” literário é aquilo que tem o dom de ligar o passado, o presente e o futuro. Já não somos mais o país do futuro nem do passado. Vivemos a lenta corrupção das últimas fibras da alma nacional. Quem quiser se salvar que preste atenção à sua biblioteca como se visse sua alma no espelho.

01/06/2014

O almoço



O almoço é um âmbito. Determina um território especial, umas chaves de comunicação, um tempo entre dois tempos (...). Me entusiasma observar os clássicos almoços de negócios, preferencialmente entre vendedores profissionais, e quase todos terminam com lágrimas nos olhos, carinhos recém-adquiridos, interesses pessoais trocados, confissões de amizade e amor, inclusive com exposição de fotografias dos seres queridos. Uma vez superada a circunstância só resta sua sombra e os protagonistas voltam ao comportamento adiado, recuperado quando desaparecem os vapores do encontro. Mas inclusive para chegar a este grau de sinceridade circunstancial é preciso uma disposição de entrega à convenção “almoço” e entrar no jogo do prazer de comer e beber” (Manual Vázquez Montalbán, Mis almuerzos con gente inquietante, Barcelona, Debolsillo, 2004)

10/02/2014

O intelectual da feijoada

Morreu Renato Pompeu, escritor de mão cheia, autor do romance Quatro olhos (1976). Ele escreveu também um opusculo chamado  A dialética da feijoada (São Paulo, Vértice, 1986). Livrinho genial por questionar um dos mitos nacionais. “A feijoada pode nos aparecer como totalidade, como unidade idêntica a si mesma; no entanto ela pode nos aparecer também como reunião casual de coisas disparatadas”.

De modo sintético, ele nos explicou: “repelida no campo, onde o prato festivo é o churrasco, a feijoada se afirmou como prato nacional-popular através do triunfo do capital industrial [...] tendo sido incorporada como bandeira de afirmação nacional pelos intelectuais urbanos, porta-vozes da afirmação do Brasil como nação. Assim é que, consagrada como prato nacional-popular no triângulo Rio-São Paulo-Minas, onde se aglutinava a intelectualidade influenciada pela industrialização, a feijoada teve e ainda tem de enfrentar outros pratos simbólicos, nas outras regiões do país, de modo que a sua afirmação como prato nacional-popular tem de ser considerada ainda um processo em andamento e não um fato acabado”.


23/01/2014

Lições de cozinha de Ferran Adrià e Roberta Sudbrack


É um acontecimento raro que bons cozinheiros sejam também bons formuladores sobre a sua disciplina. Cozinha-se muito com o “instinto” e há pouco tempo para refletir e sistematizar o que vai pelo espírito quando se tem um olho permanentemente no fogão.

Mas seguramente Santi Santamaria e Ferran Adrià são exceções neste cenário, e quem tenha visto a entrevista de Ferran no último Roda Viva certamente percebeu o camarada excepcional que ele é, sua capacidade de síntese, de generalização. Sua fala é quase sempre uma aula sobre o que queremos aprender. Sua capacidade de expressão é superior à média dos cozinheiros.

Em certo momento, por exemplo,  Adrià apontou um limite: “inovar” a tradição é apenas dar novas versões ao que já existe e não se confunde com criação. Esta está ligada à ruptura técnica. Deu o exemplo do nitrogênio líquido, que criou nova técnica e possibilitou novas invenções. Lembrou que agora é possível congelar álcool, o que antes era impossível. São coisas que dão o que pensar.

E é notável também como poucos cozinheiros no Brasil se dedicam a essa atividade: pensar sobre o que fazem, transmitindo suas conclusões. Por isso mesmo é precioso constatar que, num livro como Eu sou do camarão ensopado com chuchu, de Roberta Sudbrack - título que remete diretamente ao comer - ela não deixa de nos brindar com frases refletidas, de impacto mais geral. Um bom livro de cozinha não se limita a uma coletânea de receitas...

Em certa passagem, Roberta define sua cozinha como “de alfaiate”, ou seja, “aquela que faz florescer uma culinária das mãos, do fogo, do tempo e do prazer, com um estilo próprio, sem deixar de fora o simbólico, os elementos lúdicos que mexem com todos os sentidos e nos vinculam às nossas emoções”. Esse vínculo Roberta persegue de maneira sistemática: “no fundo, todo cozinheiro está buscando te tocar de alguma maneira com algo que já e teu, vem contigo. Muitas vezes, é uma coisa que está perdida no fundo de você e que, nesse instante, a comida te faz recuperar. Nem todos conseguem. Mas a gente tem a pretensão de achar que vai conseguir todas as noites; e, muitas vezes, consegue. Trabalhamos com emoções”.

De verdade, essa não é uma novidade. Muitos cozinheiros dizem palmilhar o terreno das emoções do cliente. Mas há vários caminhos: o tecno-emocional e o alfaiate-emocional... O importante, porém, é o espaço que se busca para o encontro das subjevidades do cozinheiro e do comensal. Roberta nos diz que “segue o ritmo das estações e exalta de forma moderna os sabores dos ingredientes brasileiros, valorizando a sociabilidade com uma comida ritualizada e preparada com minúcia técnica”.

A ritualização, que facilita a intelecção do comensal, contudo, não a afasta de um projeto maior: 

Nossa própria comida e suas singular diversidade, expressada com outros olhos - novos olhos - para além do típico, do regional, uma linguagem mais atemporal, mas que não deixa de estar referenciada em nossa cultura e ser reveladora da nossa identidade.

É esse acervo culinário presente em nosso terroir, nos nossos costumes diários mais simples, que, acredito, vai nos levar a uma gastronomia substantivamente brasileira, que para se manter sempre fresca e renovada não pode perder sua ligação com o mundo. Deve influenciar e ser influenciada por essa riqueza gastronômica global.

É isso que quero dizer quando defino minha cozinha como moderna brasileira: a preservação da nossa herança gastronômica, mas sem regionalismos. Uma comida atual, que procura unir esse nosso Brasil diverso e conversa com referências universais sem perder sua fonte nacional e o desejo de revelar todos seus gostos e tradições.

São palavras que soam como um programa bastante claro e desejável. São palavras que conflitam, por exemplo, com um grande número de publicações sobre gastronomia; com os programas de formação de chefes faculdades de gastronomia; com o discurso nacionalista em geral e os regionalistas em particular. Gente que entende esses intermediários materiais/simbólicos que comemos aderidos à história como cracas do tempo, jamais contribuirá para a modernização do Brasil comestível. Simplesmente porque não vê o país como espaço de liberdade, de criatividade, de avanço através da negação. São os “essencialistas” ligados à velha culinária que começou com Carème e chegou ao fim com a nouvelle cuisine.


Roberta trabalha para inscrever a “brasilidade” (seja ela o que for) na modernidade; não olha para trás como quem contempla um monumento canônico ao qual se deve reverência e, quando olha para trás, é para despertar a emoção no comensal, para transporta-lo para o presente vestido na roupa confortável da sua alfaiataria culinária. Assim como Adrià, Roberta nos faz aterrizar no presente. Quiçá com fôlego que nos leve ao futuro.

15/01/2014

Roberta Sudbrack rides again!

Finalmente acaba de sair o novo livro da Roberta Sudbrack. Leitura obrigatória para quantos se ocupem da cozinha brasileira sob qualquer ângulo. Um livro de maturidade, onde Roberta expõe (e exemplifica) muito de sua filosofia. 

Cada vez mais determinada, Roberta está reformando seu restaurante para, segundo me disse, “tirar tecnologia”. Enfim, uma cozinha mais corpo-a-corpo com os ingredientes vai ganhando contornos fortes e esse livro, publicado pela editora Tapioca, explica porque e como.



Tive o privilégio de escrever umas tantas páginas do livro. A seguir alguns trechos desse meu texto:
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podemos conceder aos estrangeiros que a cozinha brasileira não é mesmo fácil - e talvez por isso eles não consigam ver com clareza em meio a um jogo complexo de sombras e luzes. Somos um país muito grande, com várias “culinárias”, de sorte que dentro do próprio território nacional não nos conhecemos o suficiente. Quantos brasileiros já experimentaram tucupi? Certamente muito poucos. Quantos conhecem pequi? E todos desconfiamos de um certo artificialismo na feijoada, quando vista como “prato nacional”. Certamente é mais simbólico do que material, tantas são as “feijoadas” Brasil afora, variando o suficientemente para parecerem pratos distintos. Muito mais efetivo é o churrasco, que se come dos pampas às fronteiras amazônicas. 

Então, renovar uma cozinha assim, sem uma espinha dorsal clara, é tarefa que exige talento e trabalho; algo que se faz na paciência de cozinhas-laboratórios. Mesmo dentre aqueles que assumiram o desafio renovador em meio a uma opinião pública que celebrava a tradição, muita gente foi ficando pelo caminho por timidez, inventando “escondidinhos” nos quais substituíam a mandioca por outro tubérculo, a carne seca por linguiça e assim por diante. 

De fato, a ousadia não pode parecer, aos olhos do público, uma profanação. É preciso caminhar com cuidado, entender que a tradição representa uma solução consagrada para o uso de ingredientes que precisavam ser revisitados, reavaliados, e não substituídos como se eles mesmos fossem fonte de “caducidade”. 

Assim, durante um bom tempo os esforços em prol de uma Moderna Cozinha Brasileira estiveram presos a uma lógica mais alegórica do que inventiva. Era como se quiséssemos aprender uma língua não pela sua sintaxe, mas pelos sotaques regionais. Num outro extremo, vimos uma adesão entusiasmada à renovação técnica que soprava da Europa, especialmente da Espanha e, por esse caminho, muitos cozinheiros “descolaram” do Brasil.
Felizmente esta fase foi curta, pois a cozinha brasileira é extremamente rica pela sua diversidade e, uma vez quebrado o tabu da tradição imutável, foi engrossando o time dos cozinheiros dispostos a interrogar o que tinham à volta, iniciando um período de reflexão nunca antes visto
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A fruta do conde, o frango caipira, ora-pró-nobis, milho, chuchu, maxixe, bananas, quiabo, abóbora - tudo isso é perfeitamente legível, sem importar se é coisa autóctone ou incorporada ao longo dos séculos em nossa dieta. Desse modo, Roberta resolve o dilema “nacionalista” pelo caminho do que as pessoas realmente comem no cotidiano; não via “expedições” que hoje são feitas por chefes de cozinha para “redescobrir” ingredientes nativos nos confins da amazônia ou do cerrado brasileiro.

Some-se a isso que, na sua pesquisa, Roberta “inventa” novas velhas técnicas; improvisa vocabulário. Por exemplo, a “baixa temperatura caseira”. Há grande ironia nessa expressão que ela usa e que só os iniciados nas artes gastronômicas alcançam. A baixa temperatura certamente existe desde que o fogo é fogo. Mas, de uns anos para cá, depois que Hervé This mostrou os efeitos especiais da cocção a menos de 70ºC sobre as carnes, os restaurantes “in” resolveram alardear nos cardápios: “carne a baixa temperatura” - usando e abusando das técnicas de sous vide e do banho-maria controlado (Roner). Pouco importa qual seja essa temperatura - e pode ser variada - pois o importante é mostrar que se segue os novos cânones da moda. 

Roberta, ao introduzir o adjetivo “caseira”, subverte a mensagem carregada de epistemologia ultra-moderna para aterrizar no normal da vida. Também se cozinha a baixa temperatura em casa, no fogão a lenha; nas churrascarias que colocam o cupim e a costela de boi bem longe do fogo, submetendo-as por 12 horas ou mais. Então, onde está a novidade? A novidade está em ampliar a utilização dessa faixa de calor, não na tecnologia. A expressão robertiana é, portanto, uma crítica ao novidadeirismo, ao mesmo tempo em que se mostra alinhada com a “redescoberta” das virtudes dessa fonte tradicional de calor moderado. Assim, posiciona-se também ao lado do acolhimento que há na “vida caseira”.



Essa dialética que Roberta estabelece entre o tradicional e o moderno, entre o tecnológico e o corriqueiro - inclusive quando diz, numa época de automatismo e tecnificação, que sua mis en place começa na roça - é talvez a principal marca distintiva de sua cozinha. Ela sabe que um cozinheiro não se faz apenas por escolhas técnicas, e que é preciso alinhamento com o que de bom existe na crueza das matérias-primas. Não porque hoje também esteja em moda a “volta às raízes”, mas porque fora da integração vertical agricultura-cozinha parece não haver caminhos gastronômicos capazes de levar ao futuro de esplendor culinário que todos esperamos.

03/01/2014

A cozinha lacônica de Gera di Giovanni


Foi um privilégio receber um dos 500 exemplares do livro Cozinha lacônica, de Gera di Giovanni, fora do comércio. Não sou bibliófilo, e o privilégio vem tanto da gentileza como da possibilidade de mergulhar num universo culinário que não é o meu, embora as receitas sejam comuns. O que o livro dispõe como único é o “ma façon” da cozinha de Gera, e estou convencido de que se as pessoas se dispusessem a escancarar como cozinham para as pessoas próximas teríamos uma culinária completamente diversa dessa que se orienta pelo main stream
Sim, porque nada tem valor nos livros de receita num mundo onde a informação está disponível para todos senão aquele modo particular como nos apropriamos das coisas. Como você frita um ovo? Como faz sua omelete? O que faz com minialcachofras? Como faz figo rami? Isso é o que diferencia as pessoas na cozinha! E conversar sobre esse fazer é mais produtivo do que escolher receitas raras.
Por muitas leituras - e até por dogmatismo - não acredito em receitas. Mas guardo na mente a primeira leitura de Bocuse e sua afirmação de que receitas são proporções, não quantidades: se mudo de moleiro tenho que modificar o meu pão, dizia ele. E no último natal, no sítio de uma amiga, pude ver o jovem padeiro Richard Ildevert, professor da escola Lenotre, trabalhar numa lição prática sobre essa coisa das proporções. Usando farinha normal, farinha “0” ou “00” os pães eram formulados de modo diverso, pois o que conta é a quantidade final de gluten na massa. E ele gostou do fermento Taquara! Quando gente já ouvi dizendo que nossas farinhas não prestam, preferindo a “00” sem saber por que! E o tal do levain então? Do mesmo modo um sorvete de manga - que possui aproximadamente 12% de açúcar - necessita x% de açúcar adicional; outra fruta exigiria outro tanto e assim por diante. Relações entre coisas mutáveis não podem ser expressas em quantidades fixas, é óbvio.
O meu figo rami é diferente daquele feito por Gera. Ele usa 1/2 quilo de açúcar para 3 caixas de figo. Eu utilizo menos da metade desse açúcar e coloco, ainda, uma pequena xícara de café. No mais é igual. Agora, pergunto: essa diferença gera 2 receitas? Claro que não: gera duas maneiras de fazer, entre tantas outras que resultariam numa coisa que, com licença, poderíamos chamar igualmente de figo rami. O seu gnocchi não leva ovo. O meu leva gema, e assim por diante. A base da gastronomia é a comparação, e seria necessário um exército de pessoas dispostas a comparar ambos os produtos em provas às cegas para se chegar a uma conclusão - sempre subjetiva - de qual é o melhor. Coisa que, digamos, não tem grande graça.
A graça está em saber como Gera cozinha: como escolhe as coisas, como as prepara. Todos têm os seus modos, mas poucos se dispõem a revela-los aos outros, e por mais que cozinhar seja “imitar”, sempre introduzimos modificações naquilo que fazemos. Ai morrem as receitas e começa a criatividade.
A cozinha doméstica é a cozinha das idiossincrasias, das especificidades, pois se cozinha “para o outro” que é sempre um outro concreto, conhecido na sua subjetividade e, portanto, singular. Mas cozinhar – especialmente “cozinhar bem”  –  é saber empenhar o corpo no trabalho culinário cujo resultado é esperado num círculo pequeno de comensais, muito mais do que “seguir” qualquer receita, pois esta jamais substituirá a destreza diante da intenção finalística. E esse empenho é tão mais reconhecido e gratificante quando se faz como uma ode à subjetividade dos comensais. Por isso, não raro surpreendemos os chefs-masculinos elogiando o que chamamos de “cozinha das mães e avós” como modelo de excelência. Os pais aprenderam o gosto de cada filho para o ponto do bife, do ovo frito; o tempero do feijão; a cocção do arroz; as preferências de sobremesas, etc, coisas que aqueles que cozinham em restaurantes não sabem. 
Desse modo, a clivagem entre a cozinha doméstica e a gastronomia - que é essencialmente fruto da comparação entre vários trabalhos culinários na esfera pública - contrapõe as duas cozinhas. A cozinha doméstica não gera a “gastronomia” no sentido usual do termo; mas fornece as métricas através das quais somos levados a julgar o trabalho  dos restaurantes. Assim, “fazer para o outro” – essa doação através de um intermediário material como a comida –  permanece a marca domestica do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidade. Recuperar a “história do fazer para o outro”, suas formas e motivações, parece ser o único caminho para fixar os contornos da cozinha doméstica no mundo industrial. 
Os tradicionalistas tem dificuldades em reconhecer que os próprios ingredientes são produtos históricos, conformações da natureza que são fruto de processos seculares de escolhas que vão, aos poucos, introduzindo pequenas variações nas espécies domésticas. Eles preferem se fixar nas receitas, nos rituais do comer, considerando as matérias-primas coisas da natureza.
Mas poderíamos perguntar: qual o móvel da estética culinária? A resposta mais simples é: trata-se do desejo de agradar nas relações conviviais. Cozinhamos da melhor maneira que conseguimos para agradar os outros. Se isso é verdade, cabe a pergunta: por que, em vez de estarmos sós, cozinhar para nós mesmos, preferimos comer em companhia de outros? “Ao comermos juntos, sentimos prazer já que nosso cérebro nos dá prazer ao procedermos desse modo: no decorrer das gerações, estabeleceram-se lentamente circuitos cerebrais que conduzem ao sentimento de ‘prazer’ quando as circunstâncias nos colocam em volta de uma mesa. Melhor ainda, procuramos organizar nossa vida para termos a oportunidade de nos encontrar em volta de uma mesa”, escreveu, com razão, Hervé This.
As receitas de Gera di Giovanni são um convite para ingressar em sua casa, em sua cozinha - bastante rica em preparações; são, portanto, um capítulo da hospitalidade, mais do que um livro de “how to do” universal. O escancaramento do ma façon é, sem dúvida, um ato raro de generosidade.


22/12/2013

A arte da cozinha brasileira em duas mil palavras


É bem provável que as novas gerações jamais tenham ouvido falar de Leonardo Arroyo, tipo de intelectual que transitava entre o jornalismo e órgãos públicos de cultura, que escreveu livros de contos e infantís, além de ensaios históricos, tendo sido redator da Folha da Manhã e Folha de São Paulo. O reconhecimento de sua obra levou-o à Academia Paulista de Letras - da qual o leitor provavelmente também nunca ouviu falar. Outros tempos, outros escritores, outras formas de celebração.

Pois agora podemos conhecer uma obra póstuma sua - Arte da cozinha brasileira (São Paulo, Editora Unesp, 2013) - escrita parcialmente a partir dos anos 1960, inconclusa por sua morte em 1985. Felizmente Rosa Belluzzo, historiadora de nossa culinária, que conviveu familiarmente com Arroyo, pegou suficiente afeto pelo autor a ponto de dedicar-se nos últimos anos a completar Arte da cozinha brasileira.


Trata-se de um dicionário, com muitos verbetes (cerca de 2 mil), alguns com ares enciclopédicos, todos de valor inegável. Vários não existiam, tendo sido incluidos e totalmente redigidos por Rosa Belluzzo. Outros, muito sintéticos e indicativos, Rosa cuidou de alongar. Mas para que não haja dúvidas sobre a autoria, os textos incluidos por Rosa estão impressos em cor laranja, os de Arroyo em preto - de sorte que a obra parece a reconstrução arqueológica de uma peça da qual só temos alguns fragmentos. São, portanto, dois livros em um, permitindo perceber qual vocabulário culinário fazia sentido nos anos 60 e qual Rosa Belluzzo entende que fazem sentido hoje.

É obra de orientação mais intuitiva, subjetiva, do que científica - como hoje seria possível através do recurso à linguistica de corpus. Assim, o leitor sempre poderá achar que expressões e palavras como à la carte, albume,  barbecue,  croûton, leite condensado, páprica, parmegiana, raclete, strudel, untar, jamais fariam parte do seu vocabulário pessoal da cozinha brasileira e, no entanto, lá estão por acréscimo de Rosa Belluzzo. Outros verbetes, cujas palavras foram apenas listadas por Arroyo, também foram desenvolvidos por Belluzzo a partir de conhecimentos atuais. 

No conjunto, o dicionário Arte da cozinha brasileira recai num contexto histórico - persistente desde o surgimento da História da alimentação no Brasil, de Camara Cascudo, também dos anos 1960 - no qual ficou patente a ausência de domínio do variado vocabulário de feição nacional e regional sobre a culinária brasileira. Portanto, o que Arroyo procurou fazer, seguido por Rosa Belluzzo, foi dar um passo anti-Babel. Compilar para aclarar, definir, delimitar a vigência das palavras - eis o espírito da obra que, ainda, a faz atual mesmo que seja um eco literário de mais de meio século.

Trata-se de um livro de consultas e para especialistas. Nesse sentido, é fundamental que tenha sido editado por uma editora universitária - a Unesp - num mercado que não preza esse tipo de literatura, quase impondo a forma única dos coffee-table books responsáveis pelo tratamento da culinária no contexto único do oba-oba. Assim, o trabalho de Belluzzo e da Unesp colocam a culinária num outro patamar de tratamento, aquele que efetivamente contará na mais longa duração. 


Além disso, não é livro desprovido de sentido prático. Muitos dos verbetes são aide-mémoire de receitas tradicionais e interessantes, caidas em desuso, mas que a qualquer momento poderiam ensejar verdadeiras modas, como a recente moda do tradicional escondidinho. Vários “escondidinhos” estão ali revelados, bastando, para os cozinheiros, garimpar esse ouro puro.

01/06/2013

Nasce mais um clássico sobre cozinha portuguesa


Ano passado, a pesquisadora portuguesa Fátima Moura já havia publicado um interessante livro sobre peixes - O melhor peixe do mundo (2012) - fazendo jus à maestria portuguesa no seu preparo. Agora, seguindo em sua linha de pesquisas de produtos tradicionais, nos oferece um alentado “tratado” sobre embutidos portugueses: Sabores do ar e do fogo (2013), numa muito bem cuidada edição dos Correios de Portugal, incluindo na obra uma coleção de selos especialmente produzidos sobre o tema.

Fátima é pesquisador séria e rigorosa, coisa que o livro reflete muito bem ao percorrer as classes dos enchidos, ensacados e presuntos do Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Ribatejo, Alentejo, Algarve e Açores. Isso depois de capítulos introdutórios sobre a evolução da salsicharia - da necessidade de conservação à gastronomia propriamente dita; e do quadro da matança festiva do porco, esse ritual de sentido social riquíssimo que herdamos de Portugal mas que vai se extinguindo entre nós.

Os primeiros capítulos, são ensaios eruditos sem serem pedantes. A evolução da salsicharia mostra, através do percurso pelos livros clássicos de cozinha portuguesa (de Domingos Rodrigues, Lucas Rigaud, Paulo Plantier, OLLEBOMA e “Alinanda”) as considerações sobre os embutidos, em capítulos dedicados aos produtos do porco. O percurso vem até recentemente, incluindo os livros de Maria Odete Cortes Valente e de Maria de Lourdes Modesto - este bem conhecido dos leitores brasileiros - o que nos dá um bom panorama da estima pelo animal na cultura portuguesa e da permanência da variedade de seus derivados.

Quanto ao ritual da matança, além da análise antropológica, da forma do mutirão e das variações de costumes entre regiões e localidades, apresenta uma bela iconografia, incluindo estatueta e pinturas alusivas. Fátima Moura cita ainda o galego Cunquero, que vê a matança como “uma festa dos cristãos-novos, um estandarte na proclamação da sua inquestionável cristandade, numa época em que a Inquisição não dava tréguas” - tese repetida e explorada por Manuel Vazquez Montalbán no célebre ensaio sobre “O presunto, essa múmia cristã”.  Assim, desse capítulo emerge o porco não só como alimento apreciado, mas como um poderoso marcador cultural.

Mas o porco, para revelar suas melhores qualidades, necessita ser produzido já na sua alimentação. E Fátima Moura não se esquece de nos explicar a sua alimentação, pela bolota (azinheira) e a lande (sobreiro), com a preferência pela primeira, por ser mais doce, além da abóbora, da batata, couves e outros legumes. Isso no Alentejo, pois no Algarve eram alimentados com figos e restos de conservas de peixe - o que daria mal gosto às carnes. Assim, além das raças, diferenciam-se os porcos portugueses. 

Segue o livro por considerações técnicas relativas à produção dos enchidos (o corte das carnes, os temperos, as proporções, os climas variados sob os quais eram feitos, a cura, o fumeiro), para desembocar no capítulo que talvez mais interesse aos gourmands: a coleção de enchidos por região, destacando os de sangue, os de carne e outros, como as alheiras e farinheiras; os presuntos, etc - sempre realçando aqueles que contam com Indicação Geográfica Protegida (IGP) em cada região portuguesa. A nós, brasileiros, chama atenção especial o sarrabulho minhoto, provavelmente fonte do nosso sarrabulho nordestino e do sarapatel - segundo hipótese da historiadora pernambucana Maria Letícia Cavalcanti.

Por fim, o livro traz uma vasta bibliografia sobre enchidos portugueses (cerca de 70 títulos), um glossário e um índice remissivo que tornam a obra de fácil consulta sobre temas específicos. Assim, Sabores do ar e do fogo nasce como obra destinada a ser obrigatória para pesquisadores, especialmente aqueles que gostam de procurar similitudes e influências de Portugal sobre os nossos hábitos culinários. Nunca será demais reservar-lhe um lugar ao lado de Cozinha tradicional portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, como uma expansão daquele que é o “clássico” mais apreciado pelos leitores brasileiros.







23/04/2013

Vida comestível sob a terra


O professor Gil Felippe é dessas pessoas a quem sempre a gastronomia deverá muito, embora não seja figura que esteja naquela linha de fogo onde estão os chefs. 
Gil Felippe é guerreiro de retaguarda, organizando o caótico mundo natural para que os cozinheiros, livres do aparente caos que são as plantas que crescem por todo lado, possam classifica-las como plantas úteis, matérias-primas comestíveis. Mas, além de botânico que olha para o oficio daqueles que se utilizam das plantas, também gosta de história, de forma que sempre se aprende mais com seus livros do que seria de se esperar de uma obra de botânica.

Agora ele nos presenteia com esse Gaia: o lado oculto das plantas (São Paulo, editora Tapioca, 2013), onde o tema são os tubérculos, rizomas, raízes e bulbos. Só aprender a diferença entre essas coisas já é uma vantagem enorme para quem lida com elas.

Trufas, batatas, araruta, inhame, beterraba, lótus, cúrcuma, wasabi, e uma infinidade de outras plantas aparecem de corpo inteiro, inclusive sua história de domesticação, transformando-se de simples “coisas” em objetos culturais dos quais arrancam várias culinárias mundo afora.

É um livro obrigatório na biblioteca de qualquer cozinheiro. Evidentemente ao lado de Grãos e sementes, Árvores frutíferas exóticas, Árvores frutíferas brasileiras, Amendoim - história botânica e culinária, Entre o jardim e a horta - e tantos outros livros de sua autoria.

20/12/2012

Leitor de 5ª sugere presente de Natal


“Eu como em nome dos leitores. O que faço como trabalho é o que o leitor faz como lazer”. Assim Gilles Pudlowski, critico da Le Point, Saveurs, Lecoc Gourmand, Républicain Lorrain e Dernières Nouvelles d´Alsace - DNA define seu trabalho. Aprendiz de feiticeiro com a dupla Gault e Millau, seu livro é muito útil para compreendermos o que os críticos entendem ser sua missão. Uma apresentação de Arnaldo Lorençato a Para que serve um crítico gastronômico? (Ed. Tapioca, São Paulo, 2012) reforça algumas teses do livro, tropicalizando seu conteúdo.

Comparar e hierarquizar restaurantes ou simples coisas de comer para que o leitor não bata à porta errada. Revelar novidades, restaurar o prestígio da tradição, denunciar “as flambagens abusivas, os molhos miseráveis, os cozimentos insistentes e os produtos de baixa qualidade” - eis como esse paladino do gosto pensa prestar serviços aos leitores.



Em outras palavras, o crítico gastronômico se assemelha inicialmente a um biólogo taxonomista: diante de novos objetos vivos, aproxima-o do genero e estabelece a distância que a espécie guarda em relação às demais espécies aparentadas. Genero próximo, diferença específica. Em segundo lugar, encarna um gosto que fará seguidores, visto que as apreciações de gosto não são ilimitadas na cultura. Em terceiro, é um agitador da cultura gastronômica: indica por onde ir, entre coisas velhas e novas, e caminhos a evitar.

Tudo isso seria bem palatável caso houvesse, na sociedade, a disposição de acolher o crítico gastronômico como se acolhe o crítico literário, teatral, musical e assim por diante. Como não há, questões estranhas ao conteúdo da crítica interferem: acaso ele pagou a refeição? 

Público, jornais e revistas parecem acreditar que a isenção nasce no bolso. E não é sem propósito pois, como lembra Arnaldo Lorençato, a crítica gastronômica ganhou força, no Brasil, com Paulo Cotrim. E posso garantir que era um crítico que estava longe de ser insensível a agrados de donos de restaurantes. É claro que só há um modo de julgar um crítico: ir atrás de suas recomendações e ver o quanto elas coincidem com nosso próprio juízo. A crítica gastronômica é um encontro de subjetividades.

Um valor especial está em descobrir talentos: “coloquei no meu Pudlo France, Anne-Sophie Pic na posição de três pratos, isto é, uma das melhores mesas da França, cinco anos antes da aferição do Michelin. E a repreendi, a irritei, a aborreci quando ela começou a misturar foie gras e atum, a colocar doce em tudo”.

Essa talvez seja uma qualidade que nossos críticos ainda não desenvolveram: ter parâmetros culturais claros, situados muito além das modas, ou do gosto vulgar do público. Aqui se promove até concursos sobre pudim, ganhando um que leva como ingrediente o leite condensado; aqui se acredita que a imitação de modas estrangeiras tem um gosto forte de novidade sempre meritória. Pouco se conhece da culinária brasileira, repetindo-se o surrado discurso dos “pratos típicos” ou “regionais” que são sempre os mesmos, deixando na sombra a maioria das coisas que as pessoas realmente comem. Enfim, “o crítico não deve ser neutro, tampouco puramente elogioso, evitando que se confunda seu papel com o de um publicitário”.

Livro leve sem ser superficial, prosa agradável, um excelente “presente de Natal” tendo um gourmet ou gourmand como amigo secreto ou explícito... É sempre bom exercitar o raciocínio, qualquer que seja o gênero e a espécie de amigo.

Seguindo o assunto, temos ainda no e-BocaLivre e na finada revista Trópico:


A gastronomia política e seu crítico  








08/12/2012

Sorvetes: um passo atrás e dois para a frente


Sorvete é uma coisa estranha. Captura as pessoas por dentro, cria um frio aquietamento da alma; gera dedicação fanática. Conheço um jornalista que coleciona máquinas domésticas de sorvete. Eu mesmo, comprei uma Simac na Itália há uns 20 anos e nunca deixei de fazer “experimentos” domésticos. Agora faço com a Thermomix. Em dois dos restaurantes dos quais fui sócio, tínhamos as nossas próprias máquinas de sorvete. Nada de fornecedores. Num deles, a velha Carpegiani de eixo vertical, tendo contado com o IPT na pesquisa de um líquido não-inflamável para substituir o álcool na cuba de refrigeração (e eles escolheram a glicerina líquida, que funcionou muito bem). Alguns sorvetes agradavam muito, como o sorbet salgado de tomate, ou o sorbet misto de manga e tamarindo. 




Nesse contexto de paixão por sorvetes, conheci Rita de Medeiros em 2005, no finado Mercado Floresta - uma iniciativa que, infelizmente, não prosperou. Rita lá estava com os seus sorvetes recém oferecidos ao público. Devo a apresentação à curadoria de Quentin Geenen de Saint Maur - atento ao que acontecia em gastronomia no árido cerrado do planalto central - que me arrastou para provar aqueles maravilhas.

Impressionaram porque era a primeira vez na vida, fora do âmbito doméstico, em que eu experimentava sorvetes de frutas brasileiras com uma dosagem de açúcar mais do que correta e agradável. 

O uso do açúcar, nós sabemos, talvez seja a coisa mais difícil na pâtisserie e os hábitos populares, entre nós, comprometiam nossos promissores sorvetes. Rita veio para salvar os sorvetes da cornucópia de açúcar. E ficou claro que nunca precisaríamos ter um sorvete artesanal tão doce quanto os da Copélia, em Havana - igualmente inesquecíveis pelo defeito. Pode até parecer meio pedante, mas entre a Copélia e a Berthillon de Paris há um enorme território a ocupar. Mais amplo ainda se as frutas trabalhadas são absolutamente incomuns.

Vícios, como o do açúcar, se corrige com o tempo. Muita paciência, muita dedicação e a fibra para não sucumbir aos reclamos dos clientes. Foi o que Rita me disse. Hoje, com a publicação de Sorbets e sorvetes: uma festa de frutas brasileiras (Terceiro Nome, 2012) está claro que ela já se sente segura para defender publicamente a sua solução gastronomica para os sorvetes brasileiros.

Ano passado recebi um livro dessa glacier singular: Gastronomia do Cerrado. Um livro editado pela Fundação Banco do Brasil, onde imaginei encontrar a sorveteria da autora. Não tinha. Fiquei tão decepcionado que não gostei do livro. Impliquei com as receitas que incluíam leite condensado, ou que seguiam um figurino surrado de fórmulas internacionais (pizza, petit gateau, brusqueta, cupcake e assim por diante), apesar de alguns registros de pratos realmente interessantes, como as goianinhas (empadas de Pirenópolis). Pura implicância, pois para um livro ser útil basta marcar um único gol...

Penso que a força de nossa culinária jamais virá pela via que ela escolheu naquele livro. Mas isto está superado pois, ao contrário, Sorbets e sorvetes, é livro de grande domínio técnico sobre frutas e certamente marcará esse capítulo da culinária nacional - inclusive pelo pioneirismo.


A começar pela discussão de base etimológica que Rita faz a respeito da superioridade do léxico português sobre as distinções francesas entre sorbet e glace; italianas entre gelato e sorbetto; inglesa com ice cream. Depois, descontrói a lógica quantitativista das receitas - inclusive o modo como as escolas de gastronomia ensinam a balancear os elementos do sorvete: 20% de açúcar, 6% de gordura, além dos demais ingredientes, e técnicas de incorporação máxima de ar. Rita advoga o caminho da pesquisa, mesmo em escala doméstica e artesanal, para se “entender a relação dos ingredientes com o ar”; no sorvete de mangaba, por exemplo, “sem necessidade de adição de gorduras, ele aumenta de volume praticamente sem nenhum esforço”.

No meu modo de entender o assunto, a base para um sorvete precisa sempre atingir uma densidade cuja medida é 20º Baumé. Isso de consegue de várias maneiras: através da sauce anglaise, ou de um xarope de açúcar que se obtém com um litro de água e um quilo de açúcar e que serve para “dosar” a densidade segundo aquela que a polpa da fruta já oferece. Assim, nada mais difícil do que um sorvete que parta de um suco, como o suco de um limão. Por essa lógica ele fica invariavelmente doce, exigindo o uso de espessantes se quisermos fugir de tanto açúcar. Foi o que aprendi, através dos livros, e pratiquei na Simac.

Mas a intimidade que Rita demonstra com cerca de 40 frutas do cerrado e outros ingredientes (baunilha do cerrado, catolé, chapéu de couro, flor de ipê e mangarito) é invejável, pois passa pela análise acurada dos sabores e aromas, pelo conhecimento do manejo, especialmente o processo de coleta e, claro, a eleição do tipo de base a fazer para cada sorvete - além da indicação, para algumas frutas, do que se fazer com o bagaço após a extração do suco ou polpa. Por esse caminho, nos afastamos daquele dogmatismo que deve sempre partir de uma densidade de 20º Baumé - abaixo da qual nos aproximamos do granizado e, acima, de uma polpa meramente gelada.

Os usos de diferentes bases - água, leite, creme de leite - é decidido por Rita segundo os caracteres da fruta: densidade da polpa, gordura,  acidez, aroma. Para ela, tanto o sabor quanto o aroma precisam ser preservados no produto final e isso é que obriga a experimentar as várias bases, bem como aproveitar, quando há, a gordura da fruta. Caso extraordinário seu sorvete de pitanga, que mais se aproxima de um granizado, ponto onde as pitangas dão o melhor de si em termos de sabor e aroma. Enfim, uma sorveteria sem dogmas.

Do ponto de vista mais geral, Rita de Medeiros nos obriga a uma reflexão sobre tecnologia. Ela relata que precisou recuperar as velhas máquinas de eixo vertical - as Carpegiani - e reforma-las para poder estabelecer a sua sorveteria, o que, diante do que hoje prevalece, significou dar “um passo atrás”.

De fato, a nova tecnologia de sorvetes busca a produção padronizadas de misturas mais untuosas, mais aeradas, que o público adora. Sorveterias como Struzzi, Bacio di Latte, que fazem sucesso hoje, são expressões dessa tecnologia; na verdade, são o último elo da cadeia industrial no front de venda - os pré-mix  (estabilizantes, emulsificantes e aromatizantes; as polpas de frutas produzidas industrialmente, etc) - o que as diferencia daqueles antigos sorvetes “batidos” para serem consumidos “na hora” - no meio da tarde ou na saída do cinema - que prevaleceram no país por décadas, até a invasão dos preparados industriais.  Infelizmente, a midia consagra as soluções industriais, premiando-as com frequência, o que vai deixando o sorvete artesanal num segundo plano.

Sorbets e sorvetes restaura o artesanato, recria uma “arte”, valoriza os sabores do cerrado brasileiro e mostra, ainda, a importância social que adquire essa culinária que articula o produto final com toda uma vasta cadeia de coleta de frutas silvestres, ameaçada pelo que ameaça o cerrado em geral: o boi e a soja.

O “passo atrás” requer o incremento dos passos à frente que representa!