Uma grande
satisfação foi assistir à palestra de Francis Mallmann no Mesa Tendências. Um dos raros intelectuais desse continente
naufragante da gastronomia, esse homem que se tornou celebridade de primeira
grandeza a partir do episódio que protagoniza na série Chef´s Table da Netflix
sempre tem coisas inteligentes a dizer.
Mallmann,
sob sua indefectível boina – e não chapéu de chef – não veio preparar um assado
no palco, ou falar de Garzón, mas expor a sua “filosofia”.
Iniciou sua palestra
dizendo: “a cozinha começa no silêncio”. É no silêncio que se pica a cebola, a
salsinha, corta-se a carne.
Creio que o
termo “filosofia”, aplicado à cozinha, seja devido aos espanhóis. Ao menos ouvi
pela primeira vez da boca de Santi Santamaria e, pela segunda, de Ferràn Adriá.
Sinal de uma época onde a filosofia foi rebaixada à “escolha de Sofia” mas que
não deixa de revelar, utilizada pelos cozinheiros, um certo esforço de síntese.
“Filosofia”,
na boca dos bons cozinheiros, é um discurso sobre a relação entre os homens e
destes com a natureza. O resto é “proposta”...
E Mallmann
nos conta a conclusão a que sua experiência o levou: é no silêncio que se
percebe a distinção entre a intuição e a razão, a diferença entre atributos dos
ingredientes e da técnica. A técnica é muitas vezes gritada na cozinha, e já não
se capta a sensibilidade.
Libertar de
novo a sensibilidade quando se cozinha exige olhar crítico sobre a técnica. E
ai vem à tona o empirismo incorrigível do cozinheiro que habita nele.
Treinamento pela repetição dos gestos. Conhecer o fogo no seu íntimo,
observando seu ciclo na fogueira, desde as grandes labaredas até a doçura das
cinzas ainda quentes.
Siete Fuegos é talvez o livro mais importante
sobre o fogo, depois de A psicanálise do
fogo (1949), de Gaston Bachelard. Pode ser ignorância minha, mas vejo em Siete Fuegos um programa como o
enunciado por Bachelard: “Falou muito bem quem definiu o homem como uma mão e
uma linguagem. Mas os gestos úteis
não devem ocultar os gestos agradáveis
(...) Primitivamente, carícia e trabalho deviam estar associados (...). Quando
se põe o acento, como propomos, sobre o valor agradável, deve-se convir que, se
o fogo é útil depois, ele é agradável
em sua preparação”.
Siete Fuegos é uma etnografia sobre o fogo
agradável nas culturas indígenas da Patagônia. E Mallmann nos ensina como percebê-lo
na sua agradabilidade antes de vê-lo como coisa útil.
Se por um
lado Mallmann faz a sua cozinha a partir da intimidade com o fogo e com os
instrumentos que expressam o saber indígena no seu controle, por outro toma de
barato que os ingredientes serão sempre os melhores de sorte que um bom pedaço
de salmão, um fio de azeite e sal serão o suficiente para atingir-se a
perfeição. É a cozinha substantiva,
distante da cozinha adjetiva onde equivocamente se conjuga o bom, o belo e
o agradável com uma série de outros elementos que só fazem dificultar a sua
percepção palatal.
Quando, num
restaurante, se ouve alguém recitar que a “proposta da casa” é trabalhar com ingredientes
frescos, orgânicos ou da estação é preciso entender que “a casa” está apenas
dizendo algo do tipo: “olha, nós somos limpinhos!”. Nada a ver com uma
filosofia.
E às vezes a
“filosofia” é também algo raso, como quando se diz que privilegia “ingredientes
brasileiros”. O nacionalismo é inimigo da boa cozinha, pois absolutiza a
botânica e esconde o trabalho. Entende-se que seja o tom, em tempos entreguistas
e contraditoriamente de patriotadas como o que vivemos, mas nada tem a ver com a boa cozinha.
E o que é a boa cozinha para Mallmann? É simples:
a cozinha onde, no primeiro plano, está a mesa, a convivência, a intimidade e a
amizade, o ambiente, o logos da
sedução. A cozinha ao ar livre, a mesa entre amigos e amantes. Nada do que é
sublime está aderido à materialidade das coisas.
Essa a lição
que Mallmann nos traz, ainda que possa ser decepcionante para os cozinheiros
que acreditam piamente na técnica e na fala natural do ingrediente. A cozinha
de Mallmann, ao contrário, é aquela que brota dos afetos.
Mais sobre Francis Mallmann no e-bocalivre
Mais sobre Francis Mallmann no e-bocalivre
0 comentários:
Postar um comentário