10/11/2018

Francis Mallmann no Mesa Tendências



Uma grande satisfação foi assistir à palestra de Francis Mallmann no Mesa Tendências. Um dos raros intelectuais desse continente naufragante da gastronomia, esse homem que se tornou celebridade de primeira grandeza a partir do episódio que protagoniza na série Chef´s Table da Netflix sempre tem coisas inteligentes a dizer.
Mallmann, sob sua indefectível boina – e não chapéu de chef – não veio preparar um assado no palco, ou falar de Garzón, mas expor a sua “filosofia”. 

Iniciou sua palestra dizendo: “a cozinha começa no silêncio”. É no silêncio que se pica a cebola, a salsinha, corta-se a carne.

Creio que o termo “filosofia”, aplicado à cozinha, seja devido aos espanhóis. Ao menos ouvi pela primeira vez da boca de Santi Santamaria e, pela segunda, de Ferràn Adriá. Sinal de uma época onde a filosofia foi rebaixada à “escolha de Sofia” mas que não deixa de revelar, utilizada pelos cozinheiros, um certo esforço de síntese.
“Filosofia”, na boca dos bons cozinheiros, é um discurso sobre a relação entre os homens e destes com a natureza. O resto é “proposta”...


E Mallmann nos conta a conclusão a que sua experiência o levou: é no silêncio que se percebe a distinção entre a intuição e a razão, a diferença entre atributos dos ingredientes e da técnica. A técnica é muitas vezes gritada na cozinha, e já não se capta a sensibilidade.

Libertar de novo a sensibilidade quando se cozinha exige olhar crítico sobre a técnica. E ai vem à tona o empirismo incorrigível do cozinheiro que habita nele. Treinamento pela repetição dos gestos. Conhecer o fogo no seu íntimo, observando seu ciclo na fogueira, desde as grandes labaredas até a doçura das cinzas ainda quentes.

Siete Fuegos é talvez o livro mais importante sobre o fogo, depois de A psicanálise do fogo (1949), de Gaston Bachelard. Pode ser ignorância minha, mas vejo em Siete Fuegos um programa como o enunciado por Bachelard: “Falou muito bem quem definiu o homem como uma mão e uma linguagem. Mas os gestos úteis não devem ocultar os gestos agradáveis (...) Primitivamente, carícia e trabalho deviam estar associados (...). Quando se põe o acento, como propomos, sobre o valor agradável, deve-se convir que, se o fogo é útil depois, ele é agradável em sua preparação”.
Siete Fuegos é uma etnografia sobre o fogo agradável nas culturas indígenas da Patagônia. E Mallmann nos ensina como percebê-lo na sua agradabilidade antes de vê-lo como coisa útil.

Se por um lado Mallmann faz a sua cozinha a partir da intimidade com o fogo e com os instrumentos que expressam o saber indígena no seu controle, por outro toma de barato que os ingredientes serão sempre os melhores de sorte que um bom pedaço de salmão, um fio de azeite e sal serão o suficiente para atingir-se a perfeição. É a cozinha substantiva, distante da cozinha adjetiva  onde equivocamente se conjuga o bom, o belo e o agradável com uma série de outros elementos que só fazem dificultar a sua percepção palatal.

Quando, num restaurante, se ouve alguém recitar que a “proposta da casa” é trabalhar com ingredientes frescos, orgânicos ou da estação é preciso entender que “a casa” está apenas dizendo algo do tipo: “olha, nós somos limpinhos!”. Nada a ver com uma filosofia.

E às vezes a “filosofia” é também algo raso, como quando se diz que privilegia “ingredientes brasileiros”. O nacionalismo é inimigo da boa cozinha, pois absolutiza a botânica e esconde o trabalho. Entende-se que seja o tom, em tempos entreguistas e contraditoriamente de patriotadas como o que vivemos, mas nada tem a ver com a boa cozinha.

E  o que é a boa cozinha para Mallmann? É simples: a cozinha onde, no primeiro plano, está a mesa, a convivência, a intimidade e a amizade, o ambiente, o logos da sedução. A cozinha ao ar livre, a mesa entre amigos e amantes. Nada do que é sublime está aderido à materialidade das coisas.

Essa a lição que Mallmann nos traz, ainda que possa ser decepcionante para os cozinheiros que acreditam piamente na técnica e na fala natural do ingrediente. A cozinha de Mallmann, ao contrário, é aquela que brota dos afetos.

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