O “mundo comedor”- aquele que mastiga tudo, mesmo o que não digere - ainda se lembra da sensação que foi a aparição de Dna. Brazi, de São Gabriel da Cachoeira, no último evento do
Paladar. Aquilo era tão consistente que nos fazia suspeitar que outras existiriam.
Pois bem, existem. Há um exército de “donas Brazi” como se pode constatar em uma foto: são, pelo menos, umas quatorze. A foto se encontra no
Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro.
Em geral os chefs não lêem, segundo Santi Santamaria. Mas esse livro, que acaba de sair, terão que ler. Devagarinho. Acredito (e gostaria de estar enganado!) que seja o livro mais importante do ano, em cultura culinária.
Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro, foi editado pelo Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, da Fiocruz, pela Editora da Universidade Federal do Amazonas e pela Ong FOIRN. Não vai ser fácil comprá-lo, mas, acredite, valerá o esforço.
Só mesmo quem não lê (os comedores iletrados) acha que procurar aquele mascarpone impecável vale mais o esforço do que ir atrás de um livro mais que impecável. Pois o dito cujo foi organizado por Luiza Garnelo (médica e antropóloga) e pela índia baré, Gilda Barreto Baré. É o resultado de uma pesquisa realizada, de 2005 a 2007, entre mulheres indígenas da região. Melhor fonte não haveria.
São 87 receitas de cinco povos do Alto Rio Negro: baniwa, dzawinai, mawliene, liedawienai, kadapolitana. Gente como a gente: com línguas próprias, tradições e cozinhas. E a maioria quase absoluta dos citadinos do resto do Brasil nada ouviu sobre esses brasileiros. Muito menos de suas cozinhas.
A maior virtude culinária do livro é desconstruir a Amazônia. Ou melhor, a falsa unanimidade e uniformidade que o conceito nos sugere. Aprendemos, desde a escola, que aquela região é uma coisa só: floresta virgem,índio e bicho (depois, madeira, boi e soja). Culinariamente, acreditamos que o que se come em Belém é um resumo da Amazônia. O livro mostra que não é.
Outra grande virtude culinária é que não nos apresenta receitas da maneira que Escoffier nos ensinou que devem ser escritas: tudo padronizado, pesado. Nada disso. É um livro de etnografia: registra os processos culinários tal e qual as mulheres que participam do projeto descreveram.
Há receitas que começam na roça, descrevendo uma árvore ou uma fruta. Em outras, parece que está tudo ali, à mão, e se trata de uma alquimia: mistura isso com aquilo e estamos conversados. Ensina a fazer piracui e ensina que o melhor peixe para ele é a traira, pois “o piracui desse peixe fica bem fino”.
Dona Brazi fez, em São Paulo, a
mujeca (para mim, uma corruptela de “moqueca”) que, em língua mawlieni, se diz
dzalikha. Parece indiano, não é? Pois a receita está no livro, com simplicidade estonteante. Fiquei mesmo sem saber como se extrai tanto sabor de quase nada. Uma culinária substantiva que nos dá a sensação de que somos absolutamente adjetivos, parnasianos ao cozinhar.
Não é um livro fácil, pois usa termos com os quais não estamos familiarizados. Mas também não é difícil, pois as receitas, mesmo quando trabalhosas, não são complexas.
Não é um livro para cozinheiros, mas não é contra eles. Há, por exemplo, doces que se fazem com a garapa da cana, em vez de açúcar; há doces que não levam nem açúcar nem garapa. Há muita farinha, goma, beiju, peixes, paca, frutas, pimentas. Uma variedade inebriante. Centenas de informações interessantíssimas. Essa deve ser a matéria-prima dos cozinheiros que investigam as entranhas do Brasil. Chega de ler fontes secundárias, chega de folclorização do popular!
O livro foi concebido e realizado dentro de uma estratégia mais ampla de uma Ong, mas é o exemplo mais claro do tipo de trabalho que necessitamos para mapear o território culinário brasileiro. É etnografia que precede qualquer teorização ou qualquer “experimentação” na cozinha urbana que se pretende “de raízes”.
Francamente, se eu fosse cozinheiro passaria uns seis meses nas casas e roçados de São Gabriel da Cachoeira, em vez de ir espumar em Barcelona.