30/06/2009

Atenção, vocês dos guias gastronômicos!


Está na Barão de Tatui, quase em frente ao Così. Há centenas desses lugares na cidade. Será que em algum deles, na surdina, estão preparando um outro Rodrigo Oliveira? É questão a verificar.

De que crítica gastronômica precisamos? - VII

Um fenômeno curioso esse da moda dos nomes de pratos. Está certo: feijoada é feijoada, mas o que é "feijoada à moda da casa"? Ou "lagosta a Thermidor"? Mesmo que você saiba que é o 11º mes do calendário da República Francesa não refresca nada. Então, o crítico gastronômico precisa tabém ser um pouco crítico literário. Além de saber que quando meteram queijo parmesão na tal lagosta, trairam a receita.
A moda é mais ou menos mundial, a ponto de Santi Santamaría acusar uma certa “renovação” culinária de ser a aparência de um processo que se resume a rebatizar pratos. Renovações nominalistas.
Se formos a Escoffier (sempre ele!) encontraremos vários clássicos seus batizados em homenagem a clientes ou pessoas que admirava: pêche Melba; poire Belle Helene; fraises à la Sarah Berhardt; la poularde Sainte-Alliance. Ele odiou quando o New York Time disse que “Pêche Melba é o nome feudal para o nosso democrático sundae”. Não conseguia ver a relação entre uma coisa e outra. E havia se apagado sua homenagem à diva Nellie Melba que ele conheceu em 1893 no Savory, quando ela fazia uma temporada no Covent Garden.
Alguns dos seus pratos duraram bastante, apesar de degenerados. Como a lagosta a Thermidor. Eram nomes elitizados, que exigiam familiaridade, isto é, não eram para um “cidadão comum” como diria Lula.
Como o francês é o idioma da gastronomia clássica, os nomes fakes proliferaram. Como o norte-americano petit gâteau. Para quem sabe francês, um bolo pequeno. Quando foi criado nos EUA, nos anos 90, era só de chocolate. Hoje pode ser de diversos ingredientes, de sorte que pouca coisa de útil sabemos.
À época do Danton, nos divertíamos criando nomes de pratos. Pintade Lévi-Strauss. Era uma angola à cabidela, barbarizada com adição de creme de leite para disfarçar o sangue. Imaginamos o antropólogo deambulando pelo Brasil central, comendo angola e com saudades do creme de leite... Além disso, era super pedante. Mas o público, muito intelectualizado, entendia o recado. Para os que não entendiam, sob a linha do nome do prato em francês sempre havia uma explicação em português; em geral descrição dos principais ingredientes. Era uma época de transição.
Hoje os pratos perderam o nome evocativo de fantasia. Difunde-se uma linguagem de cardápio onde predomina, sobre a fantasia, a descrição que se pretende “objetiva”. Os clientes se dão por contentes quando o que é descrito é entregue à mesa. O cardápio é julgado pela “correspondência” com o real.
Então encontramos: patê artesanal de fígado de frango orgânico; cordeiro assado no forno a lenha; sorvete de chocolate Valrhona; salada verde orgânica com lâminas de parmesão; creme de feijão branco com camarões grelhados e perfumados ao pesto genovese; filé suíno com batatas ao forno com creme e queijo – e assim por diante.
Por trás da intenção descritiva, certas palavras e expressões se tornaram verdadeiros mantras da gastronomia atual: orgânico, natural, lâminas, perfumado, forno a lenha, baixa temperatura, suíno (em vez de porco), etc.
Como nos nomes escoffianos se insinuava o aristocratismo do comer, agora é toda uma idéia de ruralidade, de respeito à naturalidade das coisas, de delicadeza, de sustentabilidade e modernidade, que se dispõe à mesa para degustação de um público urbano ávido de vínculos com realidades mais simples e "puras", interessado por informações técnicas precisas. Co-partícipes da modernidade à mesa.
Sem compreender que as raízes dessas palavras são as ideologias nutricionais e estéticas que habitam a alma dos clientes, nunca se atingirá o real significado das frases adotadas nos cardápios para designar os pratos servidos.

29/06/2009

Entrevista na Gula


Saiu uma entrevista minha nessa Gula (nº 199), já nas bancas. Mas bom mesmo parece ser esse magret de pato com funcho, lá do Così, além das coisas do Arturito que a Paola Carosella sugere...

27/06/2009

A cozinha nua e crua

Num país onde uma simples observação sobre o trabalho de um chef é tomada como algo pessoal e, não raro, ofensivo, este livro de Santi Santamaria, a sair em breve em português, irá cair como uma bomba.
São 280 páginas que expõem as razões do autor na sua polêmica com Ferran Adrià na famosa “guerra dos fogões” que eclodiu em 2007. Nele surge, em cores modernas, a eterna oposição entre inovação e tradição. Mas Santi não é um “tradicionalista clássico” na medida que o status quo da alimentação não é o seu ideal. Muito pelo contrário. Sua visão é a dos terroirs que estão se perdendo graças à americanização dos estilos de vida e, claro, à quimicalização da alta gastronomia.
Santi é um erudito no seu terreno profissional. Algo pouco habitual “em uma profissão que lê pouco e se exibe muito”, como diz. Ele lê e comenta não só temas da culinária, o que faz com que o livro estabeleça muitas pontes com outras áreas de conhecimento.Será uma leitura obrigatória, mesmo para os que não possuem o hábito de ler, preferindo as “experiências práticas” ou ouvir a voz da tradição.

25/06/2009

De que critica gastronômica precisamos? – VI

O “negócio restaurante” deve ser objeto de tratamento da crítica gastronômica, ou pertence às páginas de economia dos grandes jornais?
O glamour atual dos chefs se baseia na identificação com o artesanato. O roteiro do chef que dá duro, acorda cedo, vai ao mercado, escolhe o melhor, prepara cada prato com a mesma atenção, observa o prato que sai da cozinha em direção à mesa, fundamenta uma idéia do “cuidar” que o cliente entende merecer e pagar por ele.
Raras são as atividades onde a noção de “preço justo” esteja tão presente. Comer bem e pagar por isso “o que vale” é a consagração do acolhimento que, idealmente, deverá se repetir sempre. É esta forma de representar a relação básica restaurante-cliente que consolida a idéia de que se trata de um artesanato único.
É difícil transcender esse tipo-ideal. Em função disso, muitos chefs que “não estão lá”, à frente do negócio, foram punidos. Esta a razão da birra histórica de Bocuse com a Gault-Millau. A revista zela pelo mito.
Mas cadeias de bistrô, expansão de negócios para outras áreas, entrelaçamentos financeiros são, cada vez mais, dimensões fortes da restauração.
Os negócios de Alain Ducasse montam a € 93 milhões; os de Joel Robuchon, a € 60 milhões; os de Laurent & Jacques Pourcel, a € 37,5 milhões; os de Georges Blanc e Paul Bocuse a, respectivamente, € 22 milhões e € 19 milhões – todos em valores de 2007 e segundo a revista francesa Challenges (nº69, março de 2007).
Nos EUA, os super-chefs de destaque, isto é, aqueles que possuem mais de um restaurante, são Wolfgang Puck, Charlie Palmer, Todd English, Milliken e Feniger, Tom Colicchio. Charlie Palmer se tornou sócio da Microsoft num software de administração de adegas que, inclusive, aumentou em US$ 750 mil suas vendas anuais de vinhos no Aureole de Las Vegas.
Decididamente não se trata apenas de small business. E os problemas não são exclusivamente culinários, haja vista o trágico suicídio de Bernard Loiseau (do qual me ocupei no livro Estrelas no céu da boca).
Os problemas da formação do gosto do público, a manutenção da qualidade homogênea, a globalização, são aspectos do negócio restaurante as big business e eles são presididos pela lógica financeira, não pela lógica das panelas.
Seria ingenuidade imaginar que isso não se reflita nas panelas. Mas também é verdade que, no Aureole de Nova Iorque (foto), comi a melhor sobremesa de chocolate de minha vida...

24/06/2009

Ovos caipiras Label rouge - II

Em função da postagem anterior sobre os ovos caipira, recebi da Granja Porto Alimentos o seguinte esclarecimento, que considero muito bom e merecedor de ser partilhado com os leitores:
Nossas galinhas são criadas à campo (2 m2 de pasto por ave), livres de stress, com alimentação 100% natural, á base de soja, milho, trigo, sais minerais e sem nenhum tipo de hormônio de crescimento, antibióticos, caroteno, farinha de osso, farinha de carne e farinha de sangue, bastante comum em granjas industriais. A coloração vermelha da gema deve-se exclusivamente á pastagem verde a qual as galinhas comem por estarem soltas à campo.
Temos também os galpões, os quais tem suas portinholas abertas para que as galinhas se protejam á noite dos animais que possam eventualmente machucá-las; no chão destes galpões, sobre o piso, colocamos a cama, esta geralmente é de serragem, palha de arroz, casca de café ou qualquer material seco deste tipo.
Sobre a questão do erro de português "Ovos Caipira", já estamos providenciando a atualização do rótulo e nas próximas embalagens já estará correto; estamos analisando também a possibilidade de colocarmos na embalagem as questões de quantidade de galinha / m2 de pasto, o informativo de que não há antibióticos, hormônio de crescimento e caroteno na alimentação destas.

A dificuldade do semifreddo

A foto, numa composição barroca, mostra um semifreddo de banana e marrons glacés.
Muita gente me pergunta sobre o semifreddo. É compreensível o desconhecimento. Somos afiliados à tradição suíça de pâtisserie, não à italiana. Assim, biscotto gelato, spumone, coppa, zuccotto, zabaglione e o semifreddo pertencem a uma escola que possui pouquíssimos praticantes entre nós.
O semifreddo não é um sorvete. Esta tradução mostra a dificuldade de compreender sua estrutura, reduzindo-a a termos equívocos. Ele também exige uma ciência para comê-lo. Já vi gente reclamando de que é “muito duro”, quando é o oposto, se consumido corretamente.
Semifreddo é um composto rico em açúcar e creme de leite, o que lhe empresta a sensação de ser menos gelado, classificando-o gastronomicamente como “sorvete de inverno”.
É obrigatório, na composição do semifreddo: a) creme de base, ao qual se acrescenta substancias saporificantes e aromatizantes (crocante, chocolate, nozes, avelãs; café, conhaque, etc); b) merengue italiano; c) creme de leite batido. Com estes três componentes se constrói toda a família dos semifreddi.
Obtêm-se o creme base misturando farinha e gema de ovo batida com açúcar, ao qual se acrescenta leite quente. Tudo nas seguintes proporções: 1 parte de leite, ½ de açúcar, ¼ de gema de ovo e 1/8 de farinha.
O merengue italiano se obtém batendo 1 parte de clara de ovo com 1/6 de açúcar e, a ele, sem parar de bater, junta-se uma calda fervente, composta de 1 parte de açúcar, 1/10 de glucose e 1/3 de água. Para um determinado peso de clara batida se junta o dobro de calda fervente, sempre batendo em alta velocidade, obtendo-se um merengue cozido.
O merengue não congela pela grande quantidade de açúcar, tem a função de regular a consistência; aumentando sua quantidade, o semifreddo se tornará mais macio; diminuindo, mais consistente. Para se obter um semifreddo padrão mescla-se 35% de creme base, 15% de merengue italiano e o restante de creme de leite batido. Depois se leva ao congelador a -20ºC. É trabalhoso, não é?
Mas na hora de comer é que são elas. A porção individual deve descansar um tempo antes de servida, para que readquira a maciez e leveza. Servido imediatamente, fica duro, inviável. É quando, num restaurante, o cliente fala: “É duro, ruim. Não gostei!” e, mais uma vez, volta-se à batida pâtisserie suíça...
Recentemente, em São Paulo, comi no Picchi e no Tappo. Picchi oferece dois: o de nozes e o de chocolate. Ambos muito bons, perfeitos, apesar de, uma vez, servido congelado ainda, o que pode levar os clientes à confusão indicada. Erro de serviço. Mas, regulando a gula, se pode esperar descongelar à mesa. O do Tappo me pareceu um falso semifreddo de chocolate; mais uma mousse congelada. Erro conceitual ou de preparação.

23/06/2009

De que crítica gastronômica precisamos? - V

"Quem educará os educadores?", perguntava Lenin às voltas com os problemas candentes da grande Revolução de Outubro. Adaptando a pergunta às mesquinharias pós-modernas, quem formará os degustadores? Esta a questão levantada pela matéria do Estadão do último domingo, no caderno Empregos.
A reportagem mostra como o degustador brasileiro é, em geral, um self-made man. Os depoimentos são de Manoel Beato (vinho), Aldir Alves Teixeira (café) e Edu Passarelli (cerveja). Há alguns cursos de clubes e associações, mas são voltados para o grande público, ou seja, visam educar os consumidores, não aqueles que querem ser orientadores profissionais por esta senda cada vez mais complexa que é o universo das mercadorias degustáveis. Degustar água, degustar café, degustar azeites, degustar chocolates - são atividades que nos situam mais claramente no mundo sensorial e nos aproximam da chamada "biografia cultural das coisas", na expressão de Igor Kopytoff.
É claro que degustar é sobretudo comparar, mas exige nariz educado, paladar educado e, se possível, conhecimento da fisiologia do gosto, especialmente como se concatenam todos os sentidos. Só sobre esta base a prática frutifica. Está mais do que na hora de alguma faculdade levar isso a sério, organizando um corpo de profissionais multidisciplinares e um curso que seja mais sistemático e menos empírico do que as modalidades correntes no mercado.

Ovos caipiras label rouge

Ovos caipira. Devia ser no plural: ovos caipiras. Nada impede os caipiras ou seus agentes publicitários de conhecerem a gramática. Também poderiam se tocar: o cenário rural brasileiro não é tão arrumadinho como na ilustração. Mas o conceito da marca é muito bom.
Ovos de animais criados em liberdade, em campos, com alimentação exclusivamente à base de cereais, complemento vitamínico e minerais, além da pastagem. Trata-se do padrão europeu de certificação de produtos animais criados nestas condições. Mas falta a informação de quantos metros quadrados por animal. E se estão isentos do consumo de hormônios de crescimento e antibióticos. Do colorante caroteno estão, pois é constatável na cor da gema.
O ideal seria que houvesse um conselho de certificação para esses produtos. O selo label rouge (ou red label) é usado, na Europa, para certificar produtores associados em torno de uma norma de produção bastante rigorosa; não é uma marca individual. Nesse nosso caso, tornou-se uma marca registrada, o que impedirá seu uso posterior por um conselho regulador. Ao menos em francês. Mas é um passo na direção correta. É fundamental quebrar o ciclo no qual animais confinados em espaços minúsculos comem ração de proteinas animais (canibais!) e tomam antibiótico para não morrem das doenças do ajuntamento e da alimentação contaminante.

A libertação do sorvete

Fico imaginando o dia no qual, ao chegarmos à sobremesa, não seremos obrigados a enfrentar apenas o indefectível sorvete de creme com baunilha (ou, mais recentemente, também o de tapioca). Haverá sorvetes de araçá, araticum, bacuri, bacaba, brejaúba, buriti, cagaiba, cajá, cajamanga, graviola, gabiroba, jabuticaba, jatobá, mangaba, murici, taperebá, umbu e tantos, tantos outros. Uns ótimos, outros horríveis, segundo nosso variado paladar. Ácidos, suaves, adstringentes, aromáticos, esquisitos. Quase todos insólitos.
Foi em 1996 que os proprietários do Frutos do Cerrado olharam à volta, tiveram uma iluminação e começaram a fazer sorvetes. São mais de 20 sabores de frutos daquele bioma. Uma verdadeira nouvelle cuisine que aporta na sorveteria!
E eles, agora, estão em São Paulo em dois endereços: Rua Áurea, 351; Rua dos Pinheiros, 320.

22/06/2009

Como é o caminho promissor

Trecho de entrevista de Rodrigo Oliveira

No Mocotó existem diretrizes específicas para criação de pratos?
Rodrigo: São algumas. Primeiro: a comida não pode ser cara, temos de ser um restaurante democrático. Também temos de colocar a cozinha nordestina em primeiro plano. A pessoa olha para o cardápio e sabe do que se trata. É cozinha nordestina e, mais especificamente, sertaneja. Não uso ingredientes importados ou coisas que não façam parte do nosso universo. Mas não sou contra quem faz isso. Forço a retirada do máximo que temos a disposição do nosso sertão. Procuro incorporar intensamente técnicas e equipamentos para tirar o máximo dos ingredientes.
Como equilibra isso?
Rodrigo: Exemplo bom é o da carne de sol, que é uma linha mestra para mim. O preparo tradicional é assado: ela fica suculenta, mas não tão macia. Já a carne de sol cozida, com aquela parte cartilaginosa gelatinizada, perde boa parte do suco, seja no cozimento, seja na finalização em forno ou brasa. Como juntar o melhor dos dois mundos sem desvirtuar a carne de sol? No restaurante, ela é salgada, maturada em temperatura controlada, seca numa estufa, embalada a vácuo, cozida a baixa temperatura e finalizada no forno. Esse é o nosso entendimento de como são as melhores características de uma carne de sol.
Entrevista completa no blog do Eduardo Girão

20/06/2009

De que crítica gastronômica precisamos? - IV

Agora, por um bom período (e até que se torne enfadonho), a imprensa especializada em gastronomia porá em relevo os ingredientes. Mas, o que é ingrediente?
Há uma maneira estreita de entendê-lo, como se fossem apenas as coisas in natura. Ora, ingrediente e produto são a mesma coisa. O ingrediente é o que está no inicio do processo de produção, entrando como matéria-prima. Mas ingredientes podem ser produtos: o queijo minas artesanal é um produto que é ingrediente para fazer o pão de queijo. Então, a condição de ingrediente ou produto depende da posição no processo de produção e, mudando esse lugar, mudam as suas determinações.
As determinações dos produtos naturais (animais ou vegetais) advém de duas fontes: a sua genética e a sua nutrição. Uma, digamos, determinando o genótipo e a outra o fenótipo, se entendermos a nutrição como o conjunto de influências meio-ambientais, e não só a alimentação da espécie. Nem tudo, nesse processo complexo, é útil ao homem.
Todos os ingredientes, mesmo os apresentados in natura, arrastam dentro de si uma história. Esta história é composta do trabalho humano que, ao longo dos séculos, arrancou aquela coisa da natureza tornando-a coisa útil; pela genética do produto, especialmente pela seleção artificial (mais recentemente, inclua-se ai a transgenia) e pela nutrição. Há, portanto, no ingrediente, o resumo de uma história natural da coisa e de uma história social humana sobre a sua utilização e transformação, especialmente sob domesticação.
A ideologia nutricionista é a que mais de perto nos afeta, abrindo flancos perigosos para o organismo humano. Reduzindo tudo a nutrientes, tendo por trás uma ideologia médica sobre saúde e longevidade, normalmente deixa de lado as condições de produção que afetam os ingredientes de forma decisiva.
Os casos do frango e do salmão são exemplares. Há a idéia comum de que peixe e frango são “mais sadios” do que carne vermelha. Será?
Salmão de cativeiro e frango são, hoje, espécies doentes. Foram transformadas de coisas naturais em resumo de uma seleção genética e um modelo nutricional sob confinamento que, em geral, retirou-lhes boa parte do sabor e da sanidade. São espécies que merecem compaixão.
Não adianta serem propagados como “frescos”, “de qualidade”, se esta qualidade é, do ponto de vista constitutivo, a negação daquelas qualidades originais.
Fazer eco ao oba-oba dos chefs em torno dos ingredientes “frescos” e “naturais” que usa é promover a mistificação, a ilusão a respeito da nossa própria nutrição. São palavras que, quase sempre, escondem uma história de valor duvidoso, quando não nocivo para a alimentação humana. No entanto constituem verdadeiro mantra gastronômico.
É bom que o frango não consuma hormônio de crescimento nem antibiótico? Parece que sim. Isso nos autoriza a chamá-lo de “natural”? Certamente todo produto que comemos é “natural”, visto que não há criação sobrenatural de frangos ou do que seja. Mas se os frangos, aglomerados como são, não consumir antibiótico poderá colocar em risco nossa saúde mais ainda. O mesmo ocorre com o salmão.
O homem criou uma “segunda natureza” em torno de si e ela não deixa muitas portas de escape para a “natureza natural”. Essa fatalidade nos obriga a observar, sempre, as condições de produção desde o primeiro momento até o prato servido no restaurante. É ingenuidade pensar que, observando restaurante adentro, possa se formar um bom juízo sobre a qualidade do que comemos. Há lugar, em nossa imprensa, para um Ralph Nader brasileiro.

Sopas, oras...

No século XIX, as sopas ocupavam com freqüência mais de um terço do volume dos livros de receitas. Escoffier, nos trazia quase 300 receitas. Então, o que os tempos fizeram com a sopa? Por que os chefs laureados da atualidade não olham para ela? Ao menos enquanto não surge um Adrià-das-sopas, a pergunta parece pertinente.
Mas há quem atente para elas. O inverno nem bem chegou e a Tatiana Szeles, a garota dos-olhos insuportáveis, exibe no seu restaurante Boa uma coleção de sopas. As de cogumelos e de abóbora gostei muito. E a casa, bem agradável com aquecedores no salão, à base de carvão, fornece o aconchego que sopas requerem.
Que muitos sigam o exemplo. Sopa para todos neste inverno! Vou começar hoje, fazendo uma ribollita.

Gastronomia molecular: o fim

Não deve passar despercebido: a gastronomia molecular acabou! Na sua colaboração mensal para a revista La Cuisine Collective, Hervé This anuncia o fim dos seminários de gastronomia molecular. Ou melhor, a ênfase mudou.
A pretensão de abranger toda a ciência na cozinha foi reduzida à analise do que Hervé This chama de precisions: as frases de uma receita que sintetizam dicas, truques, orientações tradicionais, preceitos, preconceitos, etc, que, adotados e repetidos de modo mecânico, nem sempre encontram correspondência nos fatos da ciência. Por exemplo, “mulher menstruada não deve fazer maionese, pois desanda”. O termo, tomado de empréstimo da química, remete à prática de se testar a robustez de uma hipótese.
Quando de suas palestras no Brasil, Hervé informou que já havia constituído um banco de dados com mais de 25 mil precisions! O antigo grupo da gastronomia molecular deverá se deter, agora, em analisá-las. Os seminários serão sempre na 3ª segunda-feira de cada mês, das 16 a 18 horas, na Ecole Supérieure de cuisine française (ESCF), Jean Ferrandi Center (Câmara de Comércio de Paris), 28 bis, rue de l'Abbé-Grégoire, 75006 Paris.
Nas palavras justificativas do próprio Hervé This: “Pretendemos estudar a forma das precisions de cozinha, a fim de analisar, se elas foram testadas[...]. O termo a ser utilizado, o mais é justo, é Grupo de estudo das precisions culinárias. Sim, é mais restrito, mas é mais correto... É o que faremos! Não é demais repetir que não será em duas breves horas que poderemos testar as precisions. Não poderemos ir além de discutir os protocolos que serão, em seguida, adotados pelos participantes. Os Seminários INRA de gastronomia molecular morreram. Viva o Grupo de estudo das precisions culinárias!”

18/06/2009

De que critica gastronômica precisamos? - III

Pense o seguinte: eu não lhe conheço, não sei dos seus gostos e hábitos e, de repente, topo com uma crítica sua num jornal, revista ou blog, onde se lê: “O que me surpreendeu mesmo foi o xpto de coco. Muito bom! O medalhão também estava bom, mas não excepcional. Em compensação, o tal xpto do sertão era bem gostoso!”
O que isso me diz? Absolutamente nada! O que você entende por “gostoso”? O que quer dizer “bom, mas não excepcional”? Sem querer, você não consegue me comunicar nada, ou a sua experiência não me serve de nada, caso você não seja o meu ídolo que estou disposto a seguir cegamente. Esse é o problema. E “ ingredientes brasileiros e um toque moderno”? Me explica.
Onde está o "ponto" do prato: na sua cabeça, na minha ou na do cozinheiro? E quantas vezes você não lê que tal prato estava “sem gosto”, ou, ainda, tinha “passado do ponto”?
Tomemos outra situação: o dito “ovo perfeito”. É uma forma de cozinhá-lo com resultado esperado. Ele chegou nesse ponto, ou não chegou? Ou ele é perfeito por que está escrito no cardápio como se fosse um nome de batismo? O crítico tem que saber qual seja a verdade. Já a carne “a baixa temperatura” por x horas. É importante saber a temperatura, pois presumidamente se pode estacionar em várias temperaturas abaixo de 100ºC.
A critica, na verdade, tem que estabelecer uma ponte: entre a minha cabeça e a do cozinheiro. Portanto tem que explicitar qual o “tradutor” que está usando quando emite seu juízo sobre o prato. Deve conhecer a teoria das cocções a baixa temperatura, a vácuo, etc. E precisa envolver o leitor nesse plano onde se forma o juízo.
É um problema, claro. Afinal de contas não se pode ficar dando aulas de introdução às técnicas culinárias modernas para emitir um juízo sintético. Aliás, este é o seu problema enquanto crítico...

O queijo minas emergindo das trevas

Em matéria de Lucinéia Nunes, o Paladar traz A rota do queijo mineiro. Deve ser a conseqüência imediata da “bronca” do Jeffey Steingarten sobre nossa inatividade diante do ataque e destruição do queijo minas de leite cru pela legislação sanitária anacrônica e despropositada.
Ano passado, Janaina Fidalgo já havia publicado bela reportagem sobre o queijo Canastra. Ela está reproduzida, junto com outros artigos, no site da SerTaoBras Em breve, a revista Menu publicará matéria sobre a degustação do queijo canastra real. E, assim, pouco a pouco, o queijo vai reaparecendo como assunto aqui em São Paulo, o seu maior mercado consumidor.

De que critica gastronômica precisamos? - II

Curioso. Enquanto, ontem, discutíamos aqui o tipo de crítica gastronômica necessária, o Supremo Tribunal Federal derrubava a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão. Na argumentação, o relator, ministro Gilmar Mendes, sustentou que "um excelente chefe de cozinha certamente poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima o Estado a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área".
Disse que para ser jornalista, ou cozinheiro, não é necessário diploma. O diploma só é necessário em profissões que exigem o domínio de "verdades científicas".
Pessoalmente acho que a temperatura em que ferve a água é uma “verdade científica”, e se o cozinheiro não dominar isso não será um “excelente chefe de cozinha”. Mas o ministro devia estar falando de medicina, e não vamos perder tempo com isso...
Jornalismo e culinária estão fora do campo das “verdades científicas”? Talvez o que os aproxime seja o empirismo. Não há a “teoria” no jornalismo. Nem da culinária. Um amigo, hoje conhecido jornalista e que foi meu colega de faculdade, dizia na intimidade que jornalismo era um curso de “nível médio”; quer dizer, havia que se procurar a cultura em outra parte. A culinária é a mesma coisa. Hervé This sugere a física e a química como conhecimentos úteis à culinária. Outros sugeririam história, sociologia, antropologia, além de fisiologia humana, etc.
O fundamental, para jornalismo e culinária, é estabelecer um ponto de vista a partir do qual se observa os fenômenos. O empirismo do cozinheiro dificulta isso tanto quanto a suposta objetividade do jornalista, que acredita que os “fatos” existem de modo absoluto e lhe cabe relatar.
Seria útil se os jornalistas soubessem a diferença entre “narrar” e “descrever”. Se soubessem situar o leitor dentro do drama culinário, o que é diferente de se aproximar dele como se fosse uma paisagem ou adereço. Mas isso é teoria literária e eles acham que não diz respeito ao domínio do jornalismo e, muito menos, do jornalismo culinário que pretende “descrever os fatos o mais objetivamente possível”. Deviam ler Zola, Balzac, Tolstoi, atentando para as diferenças. Descobririam muita coisa útil para si e para o leitor.
Ok, surgirão agora, nos jornais, falando de gastronomia, físicos, químicos, psicólogos, historiadores. Mas continuará sendo fundamental ter uma teoria sobre a gastronomia e conhecer as formas do discurso literário.

17/06/2009

De que critica gastronômica precisamos? - I

Estou finalizando uma introdução para a edição brasileira do livro La cuisine c'est de l'amour, de l'art, de la technique, de Hervé This e Pierre Gagnaire. Ele acabou voltando meu pensamento para a questão da crítica gastronômica, muito especialmente de restaurantes.
Afinal de contas, qual o papel de quem escreve sobre gastronomia em relação à formação do gosto? Os críticos de literatura formam o gosto por literatura, mas será que os críticos gastronômicos formam o gosto na gastronomia?
Hervé explora muito o papel de Curnonsky e opõe seu modo de pensar ao futurismo culinário de Jules Maincave. Na verdade, está em questão a reprodução da tradição, dos sabores consagrados, versus a inovação. O exemplo que ele usa com insistência é o do frango: Curnonsky é a favor do frango que parece frango eternamente, reconhecido por qualquer um. Mas há o frango refinado, como o de Bernard Loiseau. Qual é o frango que recomendaríamos para alguém?
O leitor dirá: ambos! Claro, mas o crítico que vai a um restaurante tem uma idéia clara a respeito. E comentará o trabalho do chef da sua perspectiva.
Ora, além da cultura gastronômica, o ambiente social da crítica é fundamental para definir seu formato, alcance e compromissos.
Sob este aspecto sou a favor da critica anônima. Acho que preserva o crítico da pressão do meio social em que os restaurantes estão imersos. Como era, no Brasil, a velha crítica de Apicius no Jornal do Brasil.
Josimar, publicamente, já expressou outra opinião. Ele acha mais ou menos o seguinte (espero não estar traindo seu pensamento): se o camarada cozinha mal, se o restaurante é cheio de falhas, não é por conhecê-lo e reconhecê-lo que fará um prato melhor. É um ponto de vista defensável. Há críticos bons e maus dos dois tipos.
Mas, se o crítico trabalha para um “partido gastronômico” ou estético que não é a maré dominante ele será logo classificado como impertinente, insensível, ranzinza. E as portas se fecharão para ele. O Rafael Garcia Santos é odiado por uma parte do mundo da restauração da Espanha. É muito partisan do novo. Então, nesse caso, para fazer o trabalho dele, seria melhor ser anônimo. Ele não é e paga por isso.
Há que considerar também que o mundinho da gastronomia dita “Alta” é muito pequeno. Todo mundo forma uma turma só. São prêmios distribuídos entre um círculo restrito, exercícios de degustação, aulas, encontros, colaborações com revistas, etc. Facilmente o critico é cooptado pelos interesses desse microcosmo. Perde liberdade, fala uma conveniência comercial aqui, outra ali. Torna-se “consultor” ou conselheiro dos agentes do mercado. Daí a reafirmar o senso comum é um passo.
A inovação precisa críticos cultos, anônimos, cúmplices de um projeto, não de chefs.
A critica anônima (que ao menos cumpre essa função), no Brasil, retraiu-se do jornal e se abrigou na net, se expressando através de blogs. Os jornais há décadas não renovam seu plantel de críticos. O que vemos é turn over de repórteres, que nem tem tempo de se formar como críticos.
Os blogs que mais gosto, considerando ainda as diferenças de estilo e interesses, são Alhos, passas e maçãs e Que bicho me mordeu?. O propósito deles é exclusivamente a crítica de restaurantes. Que bicho não é "anonimo" estrito, mas ainda é como se fosse. Há outros, onde surgem boas críticas, mas que tem outros propósitos também. Deve haver mais alguns exclusivamente de críticas. Acabarei conhecendo. De qualquer forma esses dois me parecem encaminhar uma renovação da abordagem crítica que acabará batendo, de novo, às portas dos jornais e revistas. É esperar para ver.

O biju de mandioca é genuinamente indígena?

“(...) o que ocorreu na Bahia e em Pernambuco foi que os cereais de segunda no reino viram-se simplesmente substituídos pela farinha de mandioca. Mesmo quando a gente de prol recorreu a ela, fê-lo sobretudo sob a forma de bijus, estimados por mais saborosos e de mais fácil digestão. Ora, o biju não era criação indígena, mas uma das muitas invenções da arte culinária das mulheres portuguesas, na sua inclinação a arremedar manjares lusitanos com produtos nativos. No caso dos bijus, tratava-se de utilizar a farinha de mandioca à maneira do que se fazia no Reino com a farinha de trigo na confecção de filhós mouriscas. Bijus espessos e torrados, que duravam mais de ano sem se deteriorarem, eram igualmente usados no aprovisionamento dos navios de torna-viagem.
A tapioca constituía outra forma de consumo de farinha de mandioca pela "gente de primor". "Grossas como filhós de polme e moles", eram, contudo, menos apreciadas que os bijus, pois "não são de tão boa digestão nem tão sadias". Ademais, e ao contrário dos bijus, eram deglutidas quentes e banhadas no leite e, misturadas com açúcar branco, resultavam deliciosas. A carimã era especialmente ingerida como pirão, feitos também de caldo de peixe ou carne, com açúcar, arroz e água de flor de laranja -pirão, aliás, inicialmente designado por marmelada de mandioca”. (Evaldo Evaldo Cabral de Mello, “Nas fronteiras do paladar”, Mais!, 28 de maio de 2000).

Finalmente a botarga


Eis finalmente a botarga! Feia, mas boa!!!

16/06/2009

Ah, os vinhos e o Estado!

Para a turma que gosta de babar-ovo para os terroirs vinícolas, aqueles que acham que o Vale dos Vinhedos atingiu a sua "maturidade", é interessante ler o artigo do Breno Raigorodsky.

Pensata futurista...

Pensata do chef futurista Jules Maincave, morto na Primeira Guerra:
“a arte da cozinha francesa permanece deploravelmente grudada a uma dezena de receitas; os mesmos pratos são apresentados nas mesas, rebatizados uma centena de vezes, com denominações que dissimulam sua medíocre uniformidade. Nos últimos três séculos, na França, foram raros os pratos verdadeiramente novos. Em primeiro lugar, denuncio as duas bastilhas da cozinha moderna: as misturas e os arômatas; alguns são excluídos, enquanto outros são aceitos pela tradição. Por exemplo, o óleo misturado com vinagre forma um molho clássico, mas a idéia de misturar rum com suco de carne de porco é considerado como herética. Por quê? O mesmo ocorre com os temperos, somos lastimavelmente limitados. Utilizamos ainda o louro, o tominho, a salsa... enquanto o progresso da química moderna nos permitia utilizar rosas, lilases, lírios".

15/06/2009

Lardo di Colonnata

Uma das coisas mais delicadas que se pode comer na vida é o lardo di Colonnata, da mesma região do mármore Carrara.
Trata-se de uma gordura de certas partes do porco, preparada de modo especial em recipientes de mármore lambuzados com alho, cobertas as peças de toucinho com especiarias, curtido por seis a dez meses. É um produto “DOC”, feito por um consórcio com apenas 12 produtores.
Ele é feito assim desde o ano 1.000. Come-se com pão ou polenta.
Comi no Picchi. É suave e delicado a não mais poder. Uma maravilha que exige completo abandono de idéias preconcebidas sobre gorduras, além do esquecimento momentâneo do cardiologista. Um exemplo raro de como uma cultura gastronômica pode tirar o máximo do mínimo. A sua presença no restaurante revela grande sensibilidade e cultura gastronômica do chef Pier Paolo Picchi.

13/06/2009

Lições do Paladar – Mesa Brasileira

Depois de passar a tarde de sábado entre torresmos e o entusiasmo do Rodrigo Oliveira no Mocotó, pude finalmente ler de cabo a rabo o suplemento Paladar – Especial, sobre cozinha do Brasil, do dia 11, editado pela Patrícia Ferraz.
Muito bom jornalismo. É claro que tem muita babação-de-ovo, como é inevitável em eventos dessa natureza. Há também, ainda, muita evocação mitológica (os negros, os índios e os brancos nos redimindo, no presente e através das panelas, dos barbarismos da escravidão e do esbulho do passado). Desse ponto de vista, parece que andamos para trás; mas, no geral, há algo muito positivo e que frutificará, apontando para a frente.
De fato, algumas frases parecem um novo começo: “O Brasil talvez seja uma lista de produtos e técnicas, sem uma dimensão geográfica fixa”. Nesta frase desarticula-se todo o arcabouço explicativo de origem étnica - o que é bastante "libertador"!
Não consigo ver muita “técnica” brasileira (não se pode fazer uma culinária só de moquém e tucupi, que são as mais frequentemente citadas como autóctones), mas isso pouco importa. O que conta é que Paladar fez um passeio enorme sobre ingredientes, e tudo foi envolto num clima de “descoberta”, embora tudo estivesse ai, e disperso pelo território há séculos. Ver o que não se via à volta é a grande transformação.
Ficou claro também que a Neide Rigo é nossa arca de sabores. Ninguém aportou tantos ingredientes e produtos à consideração geral. É o valor da pesquisa sistemática, da persistência, coisa que falta à maioria dos chefs.
Um exemplo claro é o limão-rosa, que o Rodrigo Oliveira revelou no evento. Muita gente conhece esse limão e usa há muito tempo. Ele é de grande delicadeza. Ao tempo do Nabuco, usávamos muito, mas não se conseguia comprar. Não existia mercado e, portanto, nem preço. Ganhávamos caixas e caixas de fornecedores. O que surge, agora, é o reconhecimento do seu valor culinário. Aromático ao extremo, não tão ácido como os demais, transforma uma simples limonada num refresco inesquecível.
As coisas que Dna Brazi trouxe mostram, ao contrário do mito modernista (cozinha brasileira=índios+negros+brancos), o quão pouco de “integração” houve ao longo da história. É insólito, inédito, justamente porque estamos de costas para as culinárias indígenas, e não somos “produto” da miscigenação. Alex Atala, com sua intuição enorme, percebe isso e viabilizou o convite para que Dna Brazi acontecesse nesse fórum tão especial.
Achei que Andoni Luiz Aduriz merecia mais destaque. Ele é, sem sombra de dúvida, “o” intelectual da cozinha atual, espanhola ou não. Alia pesquisa, leitura e reflexão ao cozinhar; de uma maneira que nossos chefs nem de longe conseguem. Seu livro sobre o bacalhau é a mais importante monografia sobre um produto, escrita na última década. Devia ser imitado no seu método. Reinventaríamos nossa culinária em pouco tempo.
Fiquei feliz ao ver os Troisgros às voltas com o pequi. É uma das coisas mais difíceis e mais promissoras do país. Ninguém agüenta mais comer galinhada com pequi ou bebericar o horrível licor de pequi. Está em boas mãos, vamos ver o que resultará com o tempo.
Mas fiquei envergonhado ao ler a advertência de Jeffey Steingarten, sobre o queijo minas de leite cru. Sabemos disso. Todos sabem. Parece que é preciso vir um estrangeiro, um homem que "comeu de tudo", para nos dizer o que devemos fazer. Mas, de fato, só lamentamos o espírito bocó de nossos dirigentes públicos, sufocando a pequena produção artesanal de queijo com uma legislação anacrônica e anti-gastronômica.
Precisamos combater a clandestinidade dos produtos de valor gastronômico. Se queremos um Brasil diverso, gastronomicamente falando, precisamos nos politizar. Nos organizarmos para defender causas que dizem respeito a todos que são capazes de olhar além das panelas.

Botarga: é a hora

Volto da feira com a convicção de que é a hora para fazermos a própria botarga.
As ovas frescas de tainha começam a aparecer, ao preço em torno de R$ 40. No final da temporada do ano passado, vendiam a quase R$ 70 e, ainda por cima, congeladas. Os peixeiros punham a culpa nos italianos, que importavam toda a produção brasileira.
Para evitar o ir-e-vir transatlântico das ovas, faça a sua própria botarga: deixe as ovas em sal grosso, dentro da geladeira, por um dia. (Há gente que coloca também um pouco de açúcar mascavo. Enquanto eu não descobrir para que serve, não colocarei). Lave-as, enxugue, leve ao forno a 40ºC e deixe umas 10 horas, até secarem bem, ficando duras e brilhantes.
Se tiver como guardá-las a vácuo, melhor ainda. Durarão incólumes até junho do próximo ano...

12/06/2009

O petigatô da vez


A Nutella é um senhor produto industrial. Inventada nos anos 1940 na Itália, Piemonte, por Pietro Ferrero, é a gianduia em versão popular. Popularizou-se, aliás, através da ração dos soldados na Segunda Guerra. Posso até imaginar o conforto de alma que dava, entre um tiro e outro. Em tempo de paz,tornou-se tão popular que ganhou as refeições matinais infantis, e minhas crianças nem conseguem esperar pelo lanche: “matam” a Nutella no pote mesmo, às colheradas.
É um composto de açúcar (muito!), pouca avelã (13%), pouco cacau desengordurado(7,5%), leite desnatado (5%), lactose, soro de leite, emulsificante leticina de soja e aromatizante.
O que ninguém previa é que iria se expandir agora, graças à preguiça ou falta de técnica dos nossos chefs de cozinha. Com chocolates tão bons aparecendo no mercado, por que difunde-se essa mania de sobremesas com Nutella nos cardápios? Mousses, sorvetes, até tiramissu! Por que não se faz a gianduia como deve ser feita? Dois grãos tão extraordinários, como o cacau e a avelã, mereciam se conversar melhor, sem tanta interferência do açúcar e da soja.
Preguiça, preguiça e a tentação irresistível de infantilizar o público. É o petigatô da vez.
Ok, para quem quer a "genuina" gianduia:
Uma parte de avelã, levemente torrada, levada ainda quente e sem casca ao processador; duas partes de cobertura de chocolate amargo (mínimo 50% de cacau), derretido em banho-maria. Incorpora-se a pasta de avelã ao chocolate e deixa-se esfriar para guardar. É uma base fundamental para a boa patisserie. Simples, não é? E nos livramos do excesso de açúcar, da leticina, dos aromatizantes, conservantes.
No dia dos namorados, dê um balde da verdadeira gianduia para o seu amor. Lambuzem-se no bom.

O bom, o belo e o agradável


Com o frio, me saiu muito bem este refogado de cogumelos variados, com predominância de morille e “trombeta da morte”, sob um ovo mole. O famoso "simples e bom", para curar ressaca de tantas discussões sobre técnicas, brasilidade, tipicidade, etc etc. Vale um truismo: o bom é bom porque é bom!

11/06/2009

Menos, gente, menos...

Como eu e você, e entre uma reflexão teológica e outra, o papa também vai ao banheiro fazer cocô. Inúmeros cantores de rock palitam os dentes para tirar sujeirinhas. Muitos chefes de cozinha comem gororobas em casa.
Nos mostrar essas coisas na midia é dizer: "olha, eles também são humanos!" (eu não duvidava, e você?) Ou, ainda, acolher cenas de exibicionismo explícito: fotos "artisticas" dos belos seios de uma chef sentada sobre o fogão, tatuagens de outro nu e assim por diante.
Haveria algo em comum nas preferências sexuais dos chefs? Como eles arrumam a mala para viajar? Que instruções nos dariam para dar corda no relógio? É dificil mesmo manter as fronteiras entre o público e o privado, especialmente nos tempos Andywarholianos onde 15 minutos de fama parecem valer o ridículo da exposição pessoal desmedida.
A matéria "Gororoba de chef" da Folha de hoje é simplesmente lamentável. Você acorda, abre o jornal que espera ansioso toda quinta-feira, e eis que estão lá meia duzia de chefetes barbarizando na intimidade. Ok. Mas o que disso importa para nós?
É engraçadinho? Não. Acho os meus barbarismos culinários mais interessantes do que os dos outros. Só porque eles são meus , e ninguém tem nada com isso. Como meu modo particular de aparar o bigode. E você jamais saberá qualquer coisa sobre isso. Do jornal, preferia ter a minha parte em informações públicas e, se possível, relevantes.
Que tal analisar a gravidade da notícia do Guardian sobre o super-salmão transgênico, que crescerá na metade do tempo da espécie natural, e que está próximo a ganhar aprovação do FDA americano?
Será que a Folha ficou nocauteada pela semana triunfal do Paladar do Estadão? Felizmente, faça sol ou chuva como hoje, sempre temos a coluna da Nina, salvando aquela página sempre esperada.
Bom, vamos torcer para a Folha levantar e continuar a luta no próximo round.

10/06/2009

Prêmios

Cozinha não é Fórmula 1: quem chegou primeiro ganhou! Simplesmente porque não existe o “chegar primeiro”, já que não existe um só caminho.
Essa mania de maratona para tudo é um traço da cultura norte-americana que se repete em vários domínios sem muita reflexão. Na cozinha é bastante complicado: melhor chef, melhor restaurante disso ou daquilo, melhor barman, melhor barista, revelação, etc etc etc.
A impressão que dá: faltam critérios mais objetivos para avaliar o trabalho de alguém e, por isso, confrontando com outros, o contraste ganha estatuto de verdade. Meia dúzia de subjetividades escolhidas segundo critérios nem sempre explícitos ou defensáveis à luz do dia (os chamados “juízes”) criam uma régua para medir o trabalho de centenas de pessoas e concluir: é este!
A medida sistemática e periódica parece buscar a renovação, mas é a consagração do status quo. Um gosto médio, bastante previsível, uma estética consagrada porque recorrente – tudo isso é reafirmado pelos concursos e prêmios gastronômicos.
É a construção sutil, silenciosa, da monotonia de médio prazo. Monotonia da qual se alimentam os órgãos de imprensa por longos períodos, através da ilusória renovação.
Faz bem para o ego dos ganhadores. Faz bem para os negócios (dos restaurantes e da imprensa). Mas será que faz bem para o consumidor?

De doce chega a vida...

(texto difícil de engolir...)

A aula das três meninas no Paladar, sobre o amargo , tem dado o que falar! Também, pudera, é um sabor difícil e até recentemente pouco conhecido do ponto de vista científico.
Mas, conforme os vários estudos publicados pela Scientific American Brasil – série A Ciência na Cozinha, volume 2, há uma panorama novo que as ciências fornecem para considerar o amargo.
Por vários artigos de Hervé This e outros (que resumo aqui), sabe-se que, no geral, os fisiologistas do gosto reconhecem que o sabor doce e o amargo possuem uma ação sobre o organismo menos conhecida que o do salgado e do azedo. Mas o progresso da química dos edulcorantes artificiais tem levado a uma maior atenção (mais pesquisa) sobre o amargor, inclusive exigindo remanejamento de conceitos.
Sabe-se hoje que muitas moléculas, como a D-leucina, a quinina etc têm gostos originais; o próprio sabor “doce” é mais variado do que o termo “doce” faz pensar, visto que os edulcorantes não têm todos o mesmo gosto, especialmente se considerarmos que o metil-manopiranosídeo pode ter um sabor doce e amargo ao mesmo tempo, um sabor apenas doce ou, ainda, apenas amargo e essas variações dependem das pessoas.
Os edulcorantes como o aspartame, diferente da sacarose, têm às vezes um poder adoçante mais forte (o aspartame utilizado como edulcorante é 150 a 200 vezes mais doce do que a sacarose, mas outras formas da molécula são amargas ou insípidas).
O salto na fisiologia da olfatação foi dado em 1995, quando a biologia molecular identificou as proteínas que fazem o papel de receptores das células olfativas. Na mesma época, dois biólogos da Universidade de Miami mostraram que o aparelho gustativo distingue muitos tipos de “amargos”.
Só em 2000 a família de receptores do que chamamos de “amargo” foi descoberta, quando se constatou também que os receptores individuais reagiam seletivamente a compostos de um amargor particular. Por outro lado, estudos neurológicos e comportamentais efetuados em ratos, macacos e seres humanos indicam que as diversas espécies animais distinguem vários estímulos amargos.
Assim, a cicloheximida provoca fortes variações transitórias da concentração de íons cálcio nas células receptoras. As outras moléculas testadas, como o benzoato de denatônio, o octaacetato de sacarose e a feniltiocarbamida, produzem reações inferiores mas prolongadas (que chegam a durar vários minutos). A concentração em molécula amarga a partir da qual as células reagem difere para cada tipo de molécula amarga.
Os pesquisadores de Miami constataram que apenas 18% das 374 células testadas reagiram a um ou vários dos cinco compostos amargos usados, quando estes eram aplicados com concentração moderada. Entre as células sensíveis aos compostos amargos, as reações dependiam das células: 14% delas reagiram ao cicloheximida; 4,5%, à quinina; 3,7%, ao benzoato de denatônio; 2,4%, à feniltiocarbamida; 1,6%, ao octaacetato de sacarose.
Nenhuma das papilas estudadas (as papilas agrupam várias células receptoras) parece ser específica do amargo. Esses estudos mostram, no nível celular, que as diversas partes da língua não são específicas de diversos sabores, contrariamente à hipótese “gastronômica” vulgar.
A especificidade das células receptoras dos amargos – não se pode mais dizer “do amargo” – explicaria as reações comportamentais e, especialmente, a capacidade de distinguir sensorialmente os diversos amargos.
Assim, o que significa dizer “gosto” ou “não gosto” de amargo? Muito pouco, já que não percebemos toda a extensão do sabor que reunimos genericamente sob este rótulo.

09/06/2009

A cozinha brasileira – o retorno

No debate na Livraria Cultura, acredito que ficou claro que o novo interesse pela cozinha brasileira é bastante seletivo.
Depois da fase “étnica”, isto é, quando o interesse estava dirigido para as ementas portuguesa, indígena e negra, como consagrado no mito modernista, o revival enfoca territórios, ingredientes e produtos.
É um revival no qual a classe média urbana, freqüentadora de restaurantes, está disposta a colocar a cozinha brasileira em “pé de igualdade” com outras cozinhas. Afinal, por que seríamos “piores” do que a cozinha tailandesa, por exemplo? Mas também há o inexplicado: por que os peruanos se desenvolvem na cena mundial, onde nós engatinhamos?
Deixando de lado o protagonismo dos chefs peruanos, ou o imaginário orientalista que nos leva à Tailândia, há coisas a pensar. Nós ainda temos dificuldade em pensar o Brasil, culinariamente falando, sem a opressão do peso da tradição. No caso, o peso ideológico do mito miscigenista do modernismo que acaba por dirigir o esforço de muita gente para a pesquisa da tradição. Como fazem, ou faziam tal ou qual coisa? Como “preservar” a cultura negra? Nesse enfoque, a culinária passa de fim a meio.
Sou dos que defendem que a prática culinária do dia-a-dia “preserva” ou “descarta” o repertório do passado, e o fundamental é compreender como esse processo se dá. Mas este é assunto para antropólogos, não necessariamente para culinaristas.
Estes últimos deveriam partir do que efetivamente se come hoje nos quatro cantos do país. E é preciso reconhecer que conhecem pouco sobre isso. Todos conhecemos pouco. Até o IBGE. E por isso mesmo é difícil construir um mapa “de comer” do Brasil e nos atolamos naquele formalismo estéril da divisão sóciopolítica do país.
Voltando à seletividade. Como o enfoque étnico vai se diluindo, o novo enfoque parece privilegiar os ingredientes de certos espaços ou regiões. É o caso da Amazônia. Alex Atala apontou o papel primordial de Paulo Martins na divulgação dos produtos da região, notadamente a inclusão do tucupi na agenda dos cozinheiros do Brasil todo. É absolutamente correto, mas como a “Amazônia” chegou a povoar o desejo dos brasileiros, a ponto de prestarem atenção no trabalho de Paulo Martins e outros que o seguiram nesse pioneirismo?
É bem provável que isso tenha se dado da forma tradicional: valorizada “lá fora”, passamos a demandar “Amazônia” aqui dentro. E daí vem aquela arenga toda, sobre as dificuldades de logística, etc...
E há também o peso negativo da seletividade construída em interação com o “gosto do mundo”. O cerrado, riquíssimo em ingredientes e produtos; o sertão, tão diverso em sua extensão enquanto espaço pecuário, que tem grande continuidade histórica a ligar dos Pampas às franjas da Amazônia – ambos continuam desconhecidos e desinteressantes para esta mesma classe média comedora.
Quanto mais se orientem apenas pela bússola do consumo de classe média, menos os profissionais da gastronomia se aproximarão do potencial que o Brasil, em sua enormidade e diversidade, encerra.
Além do inventário, porém, é preciso se debruçar sobre ingredientes e produtos e se perguntar: como fazês-lo dialogar com o presente? O que de bom nisso pode ser re-apresentado ao público?
Outro dia tomei num restaurante uns sucos de frutas feitos à maneira da cajuína. Não era uma maravilha, mas era bom. E o melhor de tudo era a curiosidade, persistência e vontade de experimentar dos chefes que os produziram. Não creio que haja outro caminho senão a tentativa e erro, a reflexão sistemática, o teste do paladar do público. Assim, um dia, seremos um grande Peru...

Reflexões de bastidores

Hoje foram completadas 10.000 visitas ao blog e-bocalivre e 21.000 page views. Isso em três meses e alguns dias. Não acho ruim. Ao contrário. É mais do que os leitores de todos os meus livros juntos.
O blog da Neide Rigo tem umas 1.000 visitas por dia! É o sonho de consumo dos blogueiros da alimentação. As revistas impressas em crise irreversível. E os livro também. Ou estarei quadradamente enganado?
Ontem, na Livraria Cultura, o público passou de 200 pessoas. Esteve um clima ótimo de conversa. As posições claramente polarizadas, o interesse de todos em vê-las desenvolvidas.
Acho que uma grande aquisição para essas discussões foi a antropóloga carioca Livia Barbosa, com uma linha de pesquisa e raciocínio bem distinta da que estamos acostumados aqui em São Paulo.
Uma surpresa para mim: perguntado, mais da metade do público declarou-se disposta a experimentar formiga e turu. Os tabus estão caindo. Em breve os índios serão incorporados à culinária nacional. Curioso é que havia mais gente disposta a essas experiências do que a comer escargot!
Ainda hoje teremos o link dos debates no You Tube...

08/06/2009

É hoje! Especulação sobre a cozinha brasileira

É hoje a estréia do projeto Entre Estantes e Panelas, a acontecer nos próximos 12 meses, sempre na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, com apoio do Senac.
O tema de hoje: O que é cozinha brasileira?
Mesa-redonda com os chefs Alex Atala e Mara Salles, o sociólogo Carlos Alberto Dória e a antropóloga Livia Barbosa, além da mediadora, Suzana Barelli.
Data: Segunda-feira, 8 de junho, das 18h às 19h45 (é preciso ser pontual, já que depois outro evento ocorrerá no teatro!)
Local: Teatro Eva Herz - Livraria Cultura do Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073
11 – 3170-4033
Entrada franca. Sujeita à lotação do Teatro Eva Herz (capacidade 166 lugares).

Dona Brazi veio de longe, daqui mesmo.

O Gustavo acertou. A senhora da foto do Quem é? é Dona Josefa Gonçalves de Andrade, conhecida como Dona Brazi, cozinheira em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, esquina com a Colômbia.
Dona Brazi veio a São Paulo para participar do workshop “Como se diz terroir em São Gabriel da Cachoeira?” no evento Paladar – Cozinha Brasileira, realizado no Hotel Hyatt. Vieram ela e Aquino Conde, que possui, na mesma cidade, o restaurante La Cave de Conde (sic).
Houve um jantar muito cool, conduzido por ambos, na casa de amigos que, antropólogos militantes, conhecem tudo lá de cima (Amazônia). Também estava o time de editores da revista Pororoca , liderada por Rogério Assis.
No número 3 da revista há uma reportagem que relata o que comemos naquela noite, numa matéria justamente com Dona Brazi. Esta reportagem faz da Pororoca, circunstancialmente, a melhor revista de gastronomia atualmente nas bancas (bancas selecionadas).
Impressionou-me muito a mujeca (será uma corruptela de “moqueca”?): delicado caldo de peixe, engrossado com goma de mandioca e saporificado com molho de pimenta muito especial. Molho de pimenta que incorpora a pimenta dos índios baniwa, que em breve estará no mercado como mais um produto de terroir que se consegue definir.
Muito bom também o tucupi preto, feito com formigas saúva. E Dona Brazi me desfez uma persistente dúvida erudita: o Conde Ermano Stradelli, fonte primordial de Câmara Cascudo sobre a Amazônia, fala de três tipos de tucupi: o comum, apurado por cocção; o preto, que é este caldo concentrado de tucupi e formigas; o tucupi ao sol. Nunca encontrei quem conhecesse este último, sequer outras referencias bibliográficas além de Stradelli.
Dona Brazi me explicou que os antigos o faziam, em grandes bacias que ficavam ao sol e eram mexidas sistematicamente várias vezes ao dia. “Quanto tempo demorava para fazer, Dona Brazi?”. “Ah, meses! Por isso mesmo ninguém mais faz. Dava muito trabalho”. Quer dizer: o produto desapareceu com a transformação da noção indígena de tempo.
Comemos também outras coisas, como a formiga manivara torrada. Mas é melhor mesmo ler a Pororoca e ver as fotos.
Muito bacana o pirarucu com crosta de castanha do Pará, farinha d´água e formiga manivara, que Aquino Conde apresentou, acompanhado por um pirão bem apurado de banana pacova e tapioca. De sobremesa, um creme de tapioca e o indefictível leite condensado.
Gustavo concorrerá ao sorteio de um passeio de voadeira no alto Rio Negro.

06/06/2009

Quem é?


Quem acertar concorre a um passeio de voadeira no alto Rio Negro. Resposta só na segunda-feira.

05/06/2009

O longo caminho em direção ao terroir

O conceito de terroir é muito sedutor. Mas aquilo que poderia se adequar a ele nem sempre o é. Há um longo caminho entre intenção e gesto. A região da quarta colônia, no Rio Grande do Sul, é um exemplo.
A partir de 1875 começaram a chegar as primeiras levas de colonos italianos na Província do Rio Grande do Sul. Formaram as colônias de Campos dos Bugres, Santa Isabel e Conde d´Eu – hoje, respectivamente, Caxias do Sul, Garibaldi e Bento Gonçalves. Depois dessas três colônias, o senador gaúcho Silveira Martins conseguiu, junto ao Imperador, uma nova leva de italianos para povoar a serra de São Martinho. A nova colônia – conhecida como “quarta colônia” – chamou-se, inicialmente, Cittá Nuova e, depois, Silveira Martins. Eram italianos vindos do Veneto.
A cidade de Silveira Martins, que faz fronteira com Santa Maria, tem 2.571 habitantes, segundo o IBGE. Mas já chegou a ter 25.000. Era o núcleo de uma vasta região, hoje composta por vários pequenos municípios: Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Polesine, Ivora. Essa divisão municipal veio com a Segunda Guerra, sob o Estado Novo, para “enfraquecer” o núcleo italiano. Dali saíram os italianos que foram para Santa Catarina e Paraná, para a fronteira com o Uruguai e, hoje, saem os seus descendentes que vão para a Amazônia. Na região, foi só Santa Maria que cresceu. Silveira Martins parece, hoje, uma cidade fantasma. Nos campos da região, vê-se especialmente velhos. Os jovens foram os que migraram.
Apesar disso, um ex-prefeito visionário resolveu mobilizar o potencial agroalimentar da região para transformá-lo em atrativo turístico. Ele organizou uma associação de nove municípios para fomentar o turismo. E estimulou uma cooperativa de produtores artesanais que conta com 250 artesãos que produzem embutidos, 30 produtores de cachaça e 10 produtores de “graspa” (corruptela de grappa), além de inúmeros outros que fazem “chimias” e geléias. Ele mesmo abriu um restaurante bastante sofisticado para a região. A Osteria Val de Buia foi instalada no imóvel-sede da hospedaria dos imigrantes, uma casa de pedra, totalmente restaurada.
A osteria não existe mais. Durou dois anos. E o visionário não é mais prefeito. Mas os artesãos e sua cooperativa continuam. Visitei alguma coisa. Especialmente o frigorífico artesanal, responsável pelos embutidos mais prestigiados da região. De cara ele pecava pela falta de higiene e limpeza. Por isso e por outras razões, não possui SIF. Por isso não consegue vender para fora do estado. Por isso a tendência é mais de minguar do que crescer, embora o mercado esteja ávido por produtos de terroir.
Mas encontramos lá um professor da UFSM, José Lannes, responsável por um projeto de articulação do artesanato agroalimentar com o mundo “além porteira” das propriedade rurais, já quantificadas em 148. Será o campus avançado da universidade em Silveira Martins. Há esperança portanto! Voltarei a esse assunto.
(Foto: Adolfo Gerchmann)

04/06/2009

O julgamento de Ferran Adrià


Basta ser grande para deixar de ser unânime. Cria-se também um enorme cordão de puxa-sacos. Isso é chato, incomoda. Mas, o que fazer? Adrià é grande, no sentido de que há um antes e um depois dele, mesmo que sua preeminência pareça sem fim.
Os livros de Miguel Sen (Luzes e sombras do reinado de Ferran Adrià, Senac, 2009) e de Manfred Weber-Lamberdière (As revoluções de Ferran Adrià, L&PM, 2008) poderiam ser considerados personagens de um julgamento histórico de Ferran Adrià. Acusação e defesa. Como na peça Marrat-Sade, transitamos no terreno da metafísica e da moral nesse cenário de prisão voluntária que é “A Cozinha”. O “desejo de isenção” fomenta a necessidade do julgamento.
Mas, por que ser isento? Por que decidir se Adrià mais se assemelha a Picasso ou a Dali? Qual a necessidade de estabelecer o justo valor do seu trabalho? Só mesmo se achássemos que a gastronomia se dispõe no terreno das urgências modernas. Se, ao contrário, ela se perfila ao lúdico, ao supérfluo, por que tanta agitação intelectual?
Certamente Adrià conseguiu destruir categorias de análise culinária que pareciam eternas, visto que úteis desde Carême e Escoffier. Junto com elas, vieram abaixo os críticos. Trata-se agora, me parece, de refundar a crítica, isto é, definir os novos pilares onde possa se assentar confortavelmente por mais dois séculos.
Esta a razão para se ler esses dois livros. Eles não são “justos”, no sentido que pretendem ser. Mas são necessários, no sentido de “obrigatórios” para aqueles que se ocupam, além dos pratos, com o discurso sobre eles.
Muito interessante, no livro de San, alguns insights sobre a culinária em geral: como os espanhóis ganharam a cena, o desconstrutivismo, o binômio Cataluña-Japão, a emergência do cru no prato ocidental, o pano de fundo cultural da mudança de vários hábitos alimentares e o nascimento de alguns modismos; o vinho “garage”, a rememoração de passagens proféticas de Alain Sanderens, etc etc etc. O autor, biólogo, tem estofo – ainda que não goste de Adrià por razões que não me comovem.
Já Manfred Weber-Lamberdière oferece uma espécie de história oficial. Sempre útil para sabermos como os personagens encadeiam, para consumo próprio, antecedentes e conseqüentes. Enriquecido por um posfácio do próprio Adrià, sobre as vanguardas de ontem e do amanhã.
De qualquer forma não é um julgamento irrecorrível. Sempre há o recurso ao Supremo Tribunal do Gosto.

01/06/2009

Convite: Entre estantes e panelas

O projeto Entre estantes e panelas tem por objetivo constituir um espaço reflexivo, de caráter estável, para tratamento da gastronomia como um tema de cultura, incentivando a discussão dos seus aspectos mais relevantes e explorando o caráter interdisciplinar dos conhecimentos que beneficiam o desenvolvimento gastronômico. Ele consistirá de palestras, mesas-redondas e debates mensais sobre temas culinários, com entrada franca para os interessados.

A idéia surgiu quando do lançamento de A culinária materialista, sob forma de um debate, em vez de uma noite de autógrafos. O resultado foi ótimo, e Alex Atala me perguntou: “Por que não fazemos isso sempre?” Então, propusemos o ciclo para a Livraria Cultura que, prontamente, topou.

O ciclo terá a coordenação executiva de Janaina Fidalgo e a curadoria de Alex Atala e minha. Os encontros ocorrerão uma vez por mês, no teatro Eva Herz, da Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Todos estamos fazendo isso de forma voluntária e gratuita. O propósito é criar um common, isto é, um espaço público, um “bem comum” onde se possa partilhar experiências, inquietações, debater idéias.
Os temas serão variados:
O que é a cozinha brasileira?
Ingredientes e territórios
Critica gastronômica, jornalismo e formação de público
A culinária no cinema
Blogs de alimentação: encontro dos blogueiros do gosto
Etc

Os convidados serão muitos: Neide Rigo, Carlos Alberto Ricardo, Pedro Martinelli, Arnaldo Lorençato, Josimar Melo, Cris Couto, Nina Horta, Ana Luiza Trajano, Paula Pinto e Silva, Inácio Araújo, Tereza Corção, Mônica Abdala, Luiz Horta, Eduardo Girão, um bando de chefs e um montão de gente que ainda nem sabemos qual...

Primeiro Tema: O que é cozinha brasileira?
Mesa-redonda com os chefs Alex Atala e Mara Salles, o sociólogo Carlos Alberto Dória e a antropóloga Livia Barbosa, além da mediadora, Suzana Barelli.
Data: Segunda-feira, 8 de junho, das 18h às 19h45 (é preciso ser pontual, já que depois outro evento ocorrerá no teatro!)
Local: Teatro Eva Herz - Livraria Cultura do Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073
11 – 3170-4033
Entrada franca. Sujeito a lotação do Teatro Eva Herz (capacidade 166 lugares)


Sobre os palestrantes da primeira mesa

Alex Atala é chef-proprietário do D.O.M., considerado pela revista inglesa “Restaurant” o 24º melhor restaurante do mundo, no prêmio World’s 50 Best Restaurants. Participa frequentemente de eventos internacionais, como Alimentaria e Madrid Fusión (Espanha), Identitá Golose - Congresso Italiano Di Cucina D’Autore (Itália) e Bon Appétit Culinary and Wine Focus (Estados Unidos). Foi apresentador do programa “Mesa pra Dois”, no canal pago GNT, e atualmente assina uma coluna mensal na revista “Prazeres da Mesa” e comanda o boletim “Tira Gosto Eldorado”, na Rádio Eldorado. É autor dos livros “Alex Atala - Por uma Gastronomia Brasileira” (Editora BEI), “Escoffianas Brasileiras”, escrito com a jornalista Carolina Chagas (Editora Larousse), e “Com Unhas, Dentes & Cuca” (Editora Senac São Paulo), em coautoria com Carlos Alberto Dória. Em 2009, abriu o restaurante Dalva e Dito.

Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia, professor de pós-graduação em sociologia na Unicamp e da pós-gaduação em gastronomia no Senac-Sto. Amaro. Nas décadas de 80 e 90, foi sócio dos restaurantes paulistanos Danton, Machiavelli e Nabuco. Escreve sobre gastronomia e temas de alimentação, de uma perspectiva cultural, no blog “e-Boca Livre” (www.ebocalivre.blogspot.com). Tem quatro livros publicados sobre o assunto: “Estrelas no Céu da Boca”, “Com Unhas, Dentes & Cuca”, em coautoria com Alex Atala, e “Culinária Materialista” –os três pela Editora SENAC–, além de “A Formação da Culinária Brasileira”, pela Publifolha. Escreve também, mensalmente, na revista eletrônica Trópico (www.uol.com.br/tropico).

Livia Barbosa é doutora em antropologia social e diretora de pesquisa da Escola Superior de Propaganda e Marketing. É autora de vários livros, entre eles “Cultura, Consumo e Identidade” e “Igualdade e Meritocracia: a Ética do Desempenho nas Sociedades Modernas”, ambos pela Editora FGV. Publicou também artigos relacionados à alimentação, como “Feijão com Arroz e Arroz com Feijão; o Brasil no Prato dos Brasileiros”, “Tendências da Alimentação Contemporânea” e “Comida e Sociabilidade no Brasil”.

Mara Salles é chef-proprietária do restaurante Tordesilhas e, há mais de 20 anos, se dedica à pesquisa da cozinha brasileira, ao resgate dos pratos tradicionais e ao aproveitamento dos ingredientes genuinamente nacionais. É professora de cozinha brasileira e atua no Centro de Pesquisa da Universidade Anhembi Morumbi e é autora de um capítulo dedicado às técnicas e termos empregados na cozinha brasileira do livro 400 g‘, de Betty Kövesi, Carlos Siffert, Carole Crema e Gabriela Martinoli (Companhia Editora Nacional).


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